Há duas semanas, quebrei um pedaço do dente molar. “Nossa”, pensei, “estou ficando velha!”. Meus dentes não aguentam mais mastigar as mesmas coisas que sempre comi, como castanhas-do-pará. Por que fui tão burra de mastigar uma coisa tão dura? Que raiva de mim mesma. A culpa é minha!
Fui à dentista. Ela disse que, provavelmente, o molar quebrou porque tenho bruxismo, estou apertando muito os dentes durante a noite. E me aconselhou: “Mirian, seus dentes pioraram muito. Por que você não se aposenta? Você não precisa mais trabalhar tanto assim. O desgaste dos dentes é reflexo da sua tensão, ansiedade e preocupação com o trabalho. Você precisa se divertir mais, viajar com o marido, sair com as amigas, aprender a não fazer nada”. Em resumo: como o meu maior prazer é trabalhar, vou acabar ficando uma velha desdentada. E a culpa é minha!
Depois de ficar mais de duas horas com a boca aberta na dentista, tive 38,7 graus de febre, dor de garganta, tosse, espirros, nariz entupido, noites sem dormir e estou até hoje sem paladar e olfato. Poxa, sempre uso máscara em locais fechados e tomei todas as doses da vacina para Covid e gripe. Só tirei a máscara para ir à dentista. Quem mandou comer castanha-do-pará? A culpa é minha!
Para piorar ainda mais a situação, na semana anterior havia ido à ginecologista. Levei uma bronca porque a minha osteoporose, que já era grave para a minha idade, piorou nos últimos três anos. Segundo ela, eu não poderia ter parado de tomar a injeção para osteoporose. “Não pode parar!”, ela me repreendeu, “quando para de tomar a injeção dá efeito rebote. Você não sabe que o risco de fraturar o fêmur é muito perigoso na sua idade?”. Mas, então, por que ela nunca me avisou que eu não poderia parar de tomar a injeção caríssima? Por que ela nunca me falou do tal efeito rebote? Não interessa se ela foi relapsa, lógico que a culpa é minha!
O pior de tudo não foi a febre, a tosse, a dor de garganta, a insônia, a osteoporose, o dente quebrado e o dinheiro que gastei com médicos, dentistas, exames e remédios. O pior foi levar broncas de profissionais que me disseram que estou fazendo tudo errado, que não estou sabendo me cuidar do “jeito certo” para a minha idade. Afinal, ficar velha é culpa minha!
Na minha pesquisa sobre envelhecimento e felicidade, quando perguntei às mulheres “Quem vai cuidar de você na velhice?”, elas responderam categoricamente: “Eu mesma”. E, em seguida, “minhas amigas”.
Já os homens responderam: “Minha esposa”, “minhas filhas” e “minhas netas”.
São as mulheres que cuidam. Elas cuidam de todos da família e reclamam que não sobra tempo para cuidar de si. As mulheres da chamada “geração sanduíche” sentem-se sufocadas por obrigações e responsabilidades de cuidar dos pais idosos, dos cônjuges, dos filhos e netos. Algumas cuidam até mesmo dos ex-maridos que ficaram doentes, apesar de estarem separadas há muitos anos. Um dos casos mais emocionantes que pesquisei foi o de uma escritora de 98 anos que me disse que não poderia morrer nunca, pois precisava cuidar do filho de 72 anos que teve um AVC e um infarto.
Quando eu era bem mais jovem, minhas amigas me questionavam: “Quem vai cuidar de você na velhice? Como vai ser sua velhice se você decidiu não ter filhos?”. Eu respondia: “Quem vai cuidar de mim na velhice? Eu mesma!”.
Hoje, quando me fazem a mesma pergunta, não sei como responder. Primeiro, porque já estou me sentindo uma velha decrépita e descartável. Segundo, porque, apesar de tantos anos de pesquisas, parece que não estou sabendo como cuidar de mim do “jeito certo”. E, pior ainda, a culpa é minha!
É preciso ter muita coragem para envelhecer em um país que trata os mais velhos como inúteis, ignorantes, teimosos, difíceis, ridículos, invisíveis, decrépitos e descartáveis. Ficar velho, no Brasil, é uma espécie de “morte simbólica”.
Há mais de três décadas eu venho repetindo como um mantra: “O jovem de hoje é o velho de amanhã”. Parafraseando Guimarães Rosa, o que a vida quer é ver a gente aprendendo a se cuidar no meio da juventude, e se cuidar ainda mais no meio da velhice. O que a vida quer da gente é coragem.