É verdade esse bilhete

© Rafael Sica

Oi, Fraga, talvez você ainda lembre de mim, tantos anos depois de ter escrito isto. Talvez não lembre mais, e o temor que isso aconteça é que me levou a deixar esse bilhete para eu mesmo, para mim mesmo.

Eu? Mim?

Eu e mim, são pronomes da primeira pessoa, Fraga. Primeira pessoa é você mesmo, quer dizer, nós mesmos: o Fraga que escreveu antes e o Fraga que veio (re)ler depois.

Agora escrevo com clareza e acho que domino o que digito. Nem posso imaginar como isso poderá vir a ser lido, nem consigo cogitar quando nem onde. Enquanto teclo este premeditado texto me vem a suspirada esperança de nunca vir a sentir que desconheço este bilhete a mim mesmo. Prometo me reler vez em quando, pra me habituar a reconhecê-lo.

Ao mesmo tempo, essa esperança se desdobra e se amplia: aspira que, se em algum tempo eu não mais reconhecer a própria identidade do autor deste recado a você (Fraga do futuro), que estas linhas provoquem um vago resquício de lembrança de quem foi o Fraga do passado, ambos um só. O mesmo.

Deste precioso fiapo, puxe uma nesga de outra coisa, e mais outra, e outra. Quem sabe desfie uma lembrança maior, e mais outra e outra. Quem sabe assim ressurja algum nítido contorno do Fraga que escreveu isso que você está lendo, texto este que podia ser mais simples e de mais ajuda para a condição de não-Fraga em que você possa estar, um dia, lendo isso.

Ah, Fraga, se você lembrar que escrevia torto assim, confuso assim, enviesado, que bom. E desse jeito restar uma pista autoral, levemente autorreconhecível, não estaremos tão perdidos nessa névoa. Essa coisa que hoje, às vezes, começa a obliterar certas palavras, tantos nomes, muitos rostos. Uma opacidade que nem tomografável é.

Sei lá se o verbo obliterar significará algo a você, Fraga. Logo você que, guri, costumava ler uma página de dicionário por dia. Que se divertia com jogos de palavras, que então não eram tão fugidias. Lembra? A enxurrada de sinônimos que desaguava na sua, minha, nossa mente, assim que se abria a torneira da imaginação. Recorda?

Outras pessoas, que conheceram e conviveram com o Fraga que fui, que fomos, virão ler outros textos, mostrar fotos, contar fatos. Tentarão fazer cosquinhas nas suas, minhas, nossas lembranças. Putz, vão tentar nos acordar de um sono de olhos abertos.

Porra, Fraga, escreva um help mais exato e direto pra você mesmo. Reescreva isso antes de publicar, Fraga. Ponha mais humor nisso, cara. Não me deixe esquecer do Fraga. Eu adorava ser eu.

Não está entendendo este texto, Fraga?!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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