Entre 1959 e 1961, Curitiba viu nascer e florescer a polêmica página literária, “letras e/& artes”, um marco no jornalismo cultural da capital e da vida literária paranaenses.
Reunindo toda uma geração de jornalistas, escritores, poetas, contistas, críticos de cinema e de teatro, ensaístas, filósofos, e artistas plásticos, o suplemento inovou no estilo de revelar os autores locais, e na forma gráfica de discutir e absorver a cultura brasileira na província.
Publicada aos domingos pelo jornal “Diário do Paraná”, órgão pertencente aos Diários Associados, “letras e/& artes”, meio século depois, é agora resgatada através de uma inédita edição fac-similar (84 páginas, tamanho do jornal da época, 94x64cm; 04 cores), organizada pelo seu então editor, o cineasta, poeta e escritor, Sylvio Back.
Edição limitada de 500 exemplares, fora do comércio, a coletânea, ora em lançamento, terá ampla distribuição nacional, visando sua fruição em bibliotecas, universidades e academias literárias públicas e privadas, e junto à mídia especializada, a bibliófilos e colecionadores.
O histórico feito vem a lume graças ao prestigioso patrocínio da Itaipu Binancional, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, através do projeto gráfico e de editoração de Rita de Cássia Solieri Brandt e Adriana Salmazo Zavadniak, e da seção paranaense da Biblioteca Pública do Paraná, onde está arquivada a coleção original do jornal.
A capa é de autoria do poeta e artista gráfico mineiro, Guilherme Mansur, com desenho de Manoel Furtado, e a reprodução das páginas são do fotógrafo, Cadi Busatto.
Adiante, extrato do depoimento de Sylvio Back (a íntegra abre a coleção) que, aos 22 anos, durante vinte meses, dirigiu “letras e/& artes” munido da mais ampla liberdade estética e de expressão sancionada pela cúpula do “Diário do Paraná”, na pessoa do seu diretor, Adherbal Stresser.
Pela fatura independente e ousada, tanto em matéria de conteúdo, como em sua apresentação gráfico-visual, “letras e/& artes” é um evento cultural jamais igualado na imprensa paranaense.
Suplemento cultural de Curitiba prenuncia os anos ‘60
Desde quando nasceu, em 23 de agosto de 1959 até a sua intempestiva interrupção em março de 1961, “letras e/& artes” foi um marco no jornalismo cultural de Curitiba, e na própria vida literária paranaense.
Com sua equipe de jovens autores e formatação gráfica inusual, aliada à contundência dos textos, a histórica página, agora replicada em edição fac-similar fora do comércio, sempre privilegiou a temperatura da arte no Paraná, conflagrando a engessada cultura local (leia-se, curitibana), frequentemente, afeita ao beletrismo e à mimetização do que vinha de fora.
Para dar conta dessa inédita empreitada, “letras e/& artes” tínhamos total liberdade de expressão e opinião. Jamais a editoria foi admoestada ou censurada, nem constrangida a publicar texto não solicitado.
O tônus polêmico da página era cunhado por uma plêiade de artistas plásticos, contistas, poetas, cronistas, críticos de teatro e de cinema, filósofos, historiadores, etc. que, naquele espaço semanal único, encontravam guarida para suas criaturas, muitas delas na contramão do que se produzia e publicava em Curitiba.
Lembro-me bem que as edições dominicais eram avidamente lidas por alguns colaboradores, claro, inclusive, por mim, que ficava ali lambendo a cria ainda de madrugada – na boca da rotativa. Compartilhávamos da alegria dos gráficos que se dedicavam à página, eu diria, quase autoralmente, desde a transcrição e correção dos textos na linotipo até a sua impecável impressão.
Com os dedos ainda lambuzados de tinta fresca, “letras e/& artes”, ato contínuo, era curtida nos bares e restaurantes da moda. As discussões e os debates começavam ali mesmo e se estendiam até o amanhecer de domingo, repercutindo depois na cidade pela semana afora.
Colaboradores ilustres
Na sua breve existência, totalizando oitenta e cinco edições, “letras e/& artes” (inexplicavelmente, às vezes a logomarca saía com “e”, outras, com “&”) conseguiu reunir alguns dos melhores textos de Curitiba naquele crepúsculo da década de cinquenta e cúspide dos sessenta.
Entre outros, compareciam com regularidade assinando ensaios, críticas, poemas e ilustrações, Celina Silveira Luz, Walmor Marcelino, Oscar Milton Volpini, René Dotti, Paulo Gnecco, Helena Wong, Mário Fernando Maranhão, Hélio de Freitas Puglielli, Fernando Pessoa Ferreira, Ênnio Marques Ferreira, Carlos Varassin, Luiz Carlos de Andrade Lima, Regina de Andrade, Paul Garfunkel, Heitor Saldanha, Gilberto Ricardo dos Santos, Adherbal Fortes de Sá Jr., Pedro Geraldo Escosteguy, Manoel Furtado (cujo belo desenho ilustra a capa desta edição fac-similar), Ernani Reichmann, Ivette Gusso Lopes, Alberto Massuda, Francisco Bettega Netto, Mario de Andrade, Vicente Moliterno, Edésio Passos, Erwin Hromada, Jairo Régis, Cecy Cabral Gomes, Assad Amadeu, René Bittencourt, Antenor Pupo, Luiz Geraldo Mazza, Sebastião França, Yvelise Araújo, Nelson Padrella, Mauri Furtado, Roberto Muggiati e Glauco Flores de Sá Brito.
Textos premonitórios
Frequentemente, as opiniões dos articulistas provocavam furibundas reações da micro-intelectualidade curitibana, quase toda ela de corte aufofágico, incapaz de acreditar nos criadores à sua volta (muitas delas chegavam até a pregar a extinção do suplemento). Para contrabalançar, eu tinha o retorno entusiástico dos leitores expresso em cartas, telefonemas e nas colaborações remetidas à redação.
Ainda que não tivesse nenhum parentesco nem se remetesse ao suplemento “Joaquim”, dirigido pelo então também jovem Dalton Trevisan na década de ‘40, interessante constatar hoje como “letras e/& artes” refletia uma antecipação paroquial dos anos sessenta.
Seu conteúdo estava sintonizado nas discussões nacionais sobre cultura popular, existencialismo, marxismo, arte engajada, a relevância da poesia, da literatura, do teatro e do cinema brasileiros.
Por essas e outras, a redação virtual do “letras e/& artes” sempre fervia de novidades, congregando jornalistas e autores experimentados a dezenas de neófitos (todos indisfarçáveis candidatos a escritor, poeta, crítico, advogado, político, sindicalista e cineasta…).
Com as exceções que confirmam a regra, supinamente radicais, bem ao estilo daqueles tempos ideologizados que começavam a se delinear.
Dor e orgulho
Havia naquelas edições dominicais a dor e o orgulho do saber da província: produzia-se de e para Curitiba. Não havia o flerte e a reverência ao eixo Rio-São Paulo, ainda que alguns dos nossos maiores, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, por exemplo, sempre tivessem seus poemas reproduzidos.
Havia, sim, prioritariamente, o reconhecimento da criatividade emergente local que, pela primeira vez, naquela quadra, encontrava espaço pertinente para estrear sua produção.
Arrisco dizer que “letras e/& artes”, pela pegada iconoclasta, e desde então, rotineiramente “esquecido” e omitido pela Curitiba acadêmica como se nunca tivesse existido, só teve ressuscitado seu estilo trinta anos depois pelo mensário “Nicolau” (do qual, aliás, fui assíduo colaborador).
A sua prematura “morte” em 1961, com a minha inesperada demissão do jornal por ser um dos líderes de uma greve salarial, se deixou um vácuo de tristeza entre todos que o fazíamos com tanta paixão, dele sobrevive hoje, meio século depois, uma inestimável fortuna crítica de talento, inconformismo e controvérsia.– Sylvio Back é cineasta, poeta, roteirista e escritor.
Autor de 37 filmes de curta, média e longa-metragem (11), publicou 21 livros (poesia, roteiros, contos e ensaios). Em lançamento nacional, o novo filme, “O Contestado – Restos Mortais”; em filmagem, o doc “O Universo Graciliano”; em preparo, a ficção,“A Angústia”, baseado no romance de Graciliano Ramos. sylvioback@gmail.com
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