Antes da existência dos celulares e antes mesmo do nascimento do filho, a mãe do autor francês Édouard Louis (a quem interessar, atualmente meu escritor favorito), então com 20 anos de idade, enquadrou seu rosto segurando uma máquina fotográfica ao contrário e fez o que hoje chamamos de selfie.
Na foto, ela aparece com a cabeça inclinada, sorrindo, “como se quisesse seduzir”. E tudo, segundo o autor, evoca liberdade e “uma infinidade de possibilidades à sua frente”.
Fascinado pela imagem, que retrata um tempo em que a mãe devia ter sido “forçosamente jovem e cheia de sonhos”, Louis contrasta, em um pungente e corajoso relato, o que aconteceu com a vida dela a partir de então. Poucos anos depois, estaria cheia de filhos, sem nenhum diploma e casada com um marido que ela detestava. Sem emprego, carteira de motorista ou amigos, o único sonho que aparentemente lhe restava, segundo o autor, “era voltar para trás”.
Olhar para o próprio passado, lembrando cenas terríveis e ternas da infância e da adolescência ao lado dessa mãe, é outro exercício proposto por Louis —ainda que o escritor saiba dos furos da sua investigação, castrada já de saída, e se pergunte: “Será que sou capaz de entender a vida dela se essa vida foi especificamente marcada por uma condição de mulher?”.
Como é de costume em todas as obras do autor, também neste “Lutas e Metamorfoses de uma Mulher” Louis situa o leitor na condição social de seu tempo e entorno (“ao contrário do que se possa imaginar, quanto maior a proximidade física, como no interior, mais rígidas são as fronteiras de classe”) e rememora anos de autoembate contra seus “trejeitos de menina” e toda a violência que sofreu advinda de tantos que o condenavam e o chamavam de anormal.
Édouard não queria que a mãe soubesse que, desde muito novo, ele já “conhecia o gosto da melancolia e do desespero” e diz que as primeiras páginas do livro poderiam se chamar “luta de um filho para não se tornar filho”. Conta ter se sentido vitorioso ao ouvir da mãe que a principal lembrança que ela tinha da infância do filho era a de um garoto que sorria o tempo todo.
Levando uma vida paupérrima com seus pais e irmãos, o autor relata quando pôde ter, graças ao empenho obsessivo da mãe e à ajuda de uma assistente social, férias nas montanhas. Antes de viajarem, a mãe soprou no ouvido do filho: “Enfim vou ser feliz”.
Mas Édouard não suportava as raríssimas vezes em que via a mãe assim, ouvindo música, assoviando, sorrindo e sendo feliz: “Era tão comum vê-la infeliz em casa, a felicidade em seu rosto me parecia um escândalo, uma enganação, uma mentira que era preciso desmascarar o mais rápido possível”.
A mãe falava sem parar, contando “histórias de famílias e vizinhos” a fim de preencher o tédio e “suportar o peso da sua existência”. Louis se lembra de reclamar bastante desse falatório, cortando-a sempre que podia, muitas vezes sem nem sequer ouvi-la. Hoje, justamente para lidar com esses anos em que a mãe sofreu tanto, é o autor quem precisa contar suas histórias.
Assim como Annie Ernaux em seu aclamado “O Lugar”, Louis sentiu a solidão e o não pertencimento logo que começou sua trajetória acadêmica: “aprendia novas palavras no liceu e essas palavras se tornavam o símbolo da minha nova vida” e, ainda, “a distância social tinha contaminado de tal modo nossa relação que você só me via como instrumento de uma agressão de classe, e essa situação quase me matou”.
Ele, embora tenha também se percebido em certa medida cruel e vingativo, “queria usar minha nova vida como uma vingança contra a minha infância”.
Um dia a mãe de Édouard larga o marido e telefona extasiada para o filho: “Se você visse como sou livre agora, você não me reconheceria!”. Ela se muda para Paris, deixa que o filho a leve para jantar e até faz amizade, por alguns segundos, com Catherine Deneuve.
O aspecto mais bonito de obras autobiográficas escritas por grandes autores é o compromisso deles com uma honestidade transparente, uma verdade sem firulas. Com narrativas que jorram tamanho vigor e autoridade justamente porque mostram como a realidade —e o olhar afiado e dirigido a ela—, parece extrapolar a beleza da imaginação.
Assim, Édouard Louis recorda o dia em que, já adulto, escutou da mãe que ela poderia trabalhar como faxineira para o filho, ou ainda quando, numa tarde qualquer da infância, negou para amigos ser filho daquela mulher que passava ao seu lado na rua. Ele tinha vergonha da mãe. Nas apresentações escolares de final de ano, se apresentava para os outros pais, mas não a convidava. Lendo-o, sentimos sobre nosso corpo inteiro o peso de sua dor por ter vivido esses momentos e por rememorá-los agora, ainda que sem resvalar nem por um segundo numa dramaticidade rebuscada.