Em ‘História da Violência’ autor francês destrincha o trauma de um estupro
“Em uma semana você dirá a si mesmo: já faz uma semana que aconteceu, vamos lá, e em um ano você se dirá: já faz um ano que aconteceu.” Contando os passos, os minutos, os segundos. Pensando no lençol com perfume de pêssego, que em nada se parece com o cheiro de um pêssego. É com essa mente obsessiva, ininterrupta e genial que o jovem escritor francês Édouard Louis, de 27 anos, consegue sobreviver ao trauma de um estupro (“é como a morte”, ele ouve de uma enfermeira no hospital) para escrever “História da Violência”, certamente um dos melhores livros que li nos últimos anos.
Conhecido pelo best-seller autobiográfico “O Fim de Eddy“, sobre sua juventude povoada de miséria e humilhações, Édouard é um daqueles autores incansáveis na busca pela frase mais honesta, pelo texto mais escancaradamente sincero. A literatura lhe deu tudo o que ele tem: se antes o salvou de um passado sufocante de cuspes na cara, agora afrouxa seu pescoço das lembranças de um enforcamento recente (ele quase foi assassinado pelo rapaz que o estuprou). Por isso o seu compromisso com a escrita é essa entrega tão desenfreada, desnuda e visceral.
Há dois anos, em entrevista a este jornal, declarou que só a verdade lhe interessava: “acho que a verdade tem o seu ritmo, de certa forma. É minha única preocupação”. Também em 2018, o autor disse ao El País não gostar “da literatura que é um mero exercício de estilo”.
Édouard tosse para tirar dos pulmões o ar que pode ainda ser o da respiração de Reda, seu agressor. E se pergunta por que não fugiu quando podia, por que não fez parar a agressão quando achou que tinha esse poder. Ele se pergunta por que, como a personagem Temple, no romance “Santuário”, de William Faulkner, se agarrou à inércia? Sua irmã, que paralelamente narra uma versão da história para o marido, com requintes sensacionalistas e um linguajar típico de uma pessoa grosseira (mas, vez ou outra, mostrando conhecer bem o irmão), confessa que jamais lhe diria “a verdade”, mas acha que sua carência o faz ser assim, “se apega muito rápido”, ou, talvez, ele tenha suportado tudo aquilo por ter “sido educado na dureza”, mesmo querendo mostrar que não pertence mais a ela.
Em itálico, o escritor, que ouvia tudo atrás da porta, registra o monólogo da irmã (o marido motorista de caminhão só escuta, acostumado ao silêncio das estradas). Em seu primeiro livro, ele já havia utilizado esse recurso para destacar sua voz mais livre e confessional.
Formado em ciências sociais e crítico ao sistema carcerário de seu país, Édouard Louis nos descreve uma polícia burra e racista, feliz em classificar Reda como um “tipo magrebino”, não fazendo referência a uma origem geográfica, mas sim adjetivando o sujeito como “ralé, bandido e delinquente” ou insistindo que são sempre os árabes a cometer crimes na França.
No meio do interrogatório, arrependido de estar ali, desejando até mesmo proteger Reda (não acredita em violência contra a violência e tem as piores lembranças de visitar um primo na prisão), ele quer desistir, mas ouve que sua história não mais lhe pertence. Sua resposta veio em forma de obra-prima.