Judith Miller, a filha da qual Jacques Lacan falava com ternura e afinidade –além de exibir, enfeitiçado, um porta-retrato com sua foto no consultório–, não levava seu sobrenome. Este livro é escrito por Sibylle Lacan, uma das filhas renegadas do primeiro casamento. “Nós sabíamos que tínhamos um pai, mas, aparentemente, os pais não eram presentes. A minha mãe era tudo para nós: o amor, a segurança, a autoridade.”
O título “Um pai” carrega todo o esplendor acusativo e irônico que um pronome indefinido pode ter. Já de saída a autora avisa que o livro não é um romance (“nele não se encontrará nenhum detalhe inventado com o objetivo de embelezar a narrativa ou ampliar o texto”), e o subtítulo, “Puzzle”, revela que suas anotações não seguem um fluxo linear e intrincado; são soltas, desordenadas.
Talvez a criança, com ciúme da atenção que recebiam as pacientes do pai, tenha conseguido em vida adulta, por meio da escrita, da palavra, que sua torrente de pensamentos ganhasse algum reconhecimento e contorno: “Formentera é o nome da ilha que escolhi […] como local de férias: FORTE-ME-ENTERRA”.
A sós com Lacan, nas raras vezes em que saíam para jantar (ela o descreve como “um pai intermitente, a conta-gotas”), Sibylle suspendia o que chamava de “estado de solidão afetiva” –a mãe tampouco a havia desejado e estava “no fundo do seu próprio poço” quando a filha nasceu– e podia experimentar pratos luxuosos, segurar na mão do pai e se sentir “radiante, alegre” e, finalmente, “uma pessoa por inteiro”.
Logo após vê-lo dançando com Judith, a filha preferida (“ela era toda amável e perfeita e eu toda estabanada e torta”), “como dois namorados”, Sibylle cai doente, “um esgotamento geral, zero desejo, zero prazer, uma perturbação medonha”. Na esperança de que o genial psicanalista pudesse curá-la, a filha o aguarda para uma consulta. Da janela, vê o pai, atrasado, saindo de um prostíbulo chique.
Outras obras, com mais complexidade e pretensões literárias, talvez possam explorar melhor o caráter prodigioso, ególatra, insubmisso e dinheirista de Lacan. Mas este é o breve relato de uma filha abandonada (“Quando nasci, meu pai já não estava mais lá”), uma organização corajosa e salutar de uma mente lutando contra uma iminente psicose. São textos sobre a inscrição e a imposição da voz, da história e do nome da autora. Este é o memoir dos sintomas da filha de um dos maiores especialistas em sintomas dos filhos dos outros. Talvez seja também um livro-cura.
Se antes Lacan relegou a filha a um posto de mera conhecida, aqui Sibylle o situa, isolado de tudo aquilo que o honrou como profissional de influência e renome mundial, como o pai que não quis ser para ela.