Uma investigação recentemente aberta na Justiça argentina para esclarecer o sequestro e desaparecimento do brasileiro Edmur Péricles Camargo, em junho de 1971, recoloca na pauta judicial abusos e violações que o governo militarizado do presidente Jair Bolsonaro nega: a execução planejada de militantes de esquerda banidos e aprisionados através da infiltração de agentes nas organizações de esquerda durante a ditadura brasileira. O processo argentino joga luzes também sobre a forte atuação do maior de todos os espiões infiltrados, o brasileiro naturalizado uruguaio Alberto Octávio Conrado Avegno, cuja atuação no Uruguai, Argentina, Chile, Cuba e Argélia ajudou a destroçar os grupos da esquerda armada que resistiram à ditadura e está ligada à morte de mais de 70 exilados desaparecidos, entre eles Camargo.
Edmur Péricles Camargo, na época asilado no Chile, seguia para Montevidéu quando foi retirado clandestinamente de um avião da Lan-Chile que fez escala no Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, no dia 16 de junho de 1971. Levado para uma base da Força Aérea Argentina a 30 quilômetros, o Aeroparque, foi embarcado num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo ao Brasil no dia seguinte. Os últimos registros de Camargo em vida são o pouso do avião da FAB no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, na manhã de 17 de junho de 1971, e o testemunho de presos políticos que o viram ingressar no quartel do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, famoso centro de tortura e execuções.
O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre, Jair Krischke, desarquivou os documentos secretos sobre a operação ilegal e, numa denúncia assinada também pelo ativista Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, busca a responsabilização criminal dos militares brasileiros e argentinos na Justiça Federal de Lomas de Zamora, na região metropolitana de Buenos Aires. Lá, ao contrário da jurisprudência firmada pela Justiça brasileira, desaparecimento forçado é crime de lesa-humanidade e imprescritível, portanto punível com prisão. Os dois prestaram depoimento por videoconferência na semana passada, abrindo o processo e pedindo que a Justiça determine investigação para identificar os agentes argentinos.
Os brasileiros citados na denúncia são o general da reserva Sebastião José Ramos de Castro, que foi chefe do SNI, coronel aviador Miguel Cunha Lana, e o diplomata Paulo Sérgio Nero, já falecido. É o único caso em andamento em que agentes livres da lei graças à complacência do Estado brasileiro com os crimes da ditadura podem acabar sendo punidos no exterior junto com agentes estrangeiros que colaboraram com a operação ilegal.