Como ouvir o discurso que seria a sentença de morte do presidente desde 1961 ao incitar todos a “lutar com todas as forças” pela reforma? Um discurso que também foi numa sexta-feira, 13 de março de 1964, sem prever que dezoito dias depois, no fatídico 31 de março — ou talvez 1º de abril — os militares tomariam o poder frustrando políticos como Carlos Lacerda, o governador da Guanabara que não se conformou, como prova o áudio do jingle anunciando Lacerda para presidente em 1965.
Esses tesouros estão inseridos na exposição sobre “As Cantoras e a História do Rádio no Brasil”, entre 250 fotos, 114 objetos e recursos sonoros e audiovisuais. Nesse passeio pela linha do tempo que o rádio construiu no Brasil, principalmente entre as décadas de 1920 e 1960, está a história viva que todos os brasileiros, professores e alunos deveriam buscar até 25 de junho, no Farol Santander em São Paulo, rua João Brícola: o rádio como receptor da História.
Porque, emendando a fala de Getúlio, o áudio remete ao locutor anunciando que as tropas do II Exército, com o General Kruel à frente, já sitiaram o Estado da Guanabara, e que a presidência da República está vaga para ser ocupada pelo presidente da Câmara. Ranieri Mazzilli assume de fato no dia 2 de abril. Frustração: no dia seguinte, os militares desencadeiam a onda de prisões de líderes políticos, como o governador de Pernambuco Miguel Arraes, de dirigentes sindicais e camponeses, enquanto Jango se refugia no Uruguai. E no dia 9 de abril, a troica de militares que governa de fato o Brasil, composta pelo general Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Rademaker e o Tenente-Brigadeiro Correia de Melo, decreta o Ato Institucional no 1º. Com uma anunciada eleição indireta para presidente da República em 1966, que nunca aconteceu, começa o circo de horrores que levaria à tortura, desaparecimento, sequestros e morte violenta de milhares de brasileiros.
Daí a importância dos registros radiofônicos que n’O Observatório da Imprensa, Alberto Dines explica em off, numa parede de destaque na exposição, num documentário que marcou os 90 anos das emissões no Brasil. Os primeiros ruídos, diz Dines, se ouvem a 7 de setembro de 1922, no discurso do presidente Epitácio Pessoa pelo centenário da independência. Dines explica que o governo não se interessou mais e começou a desmontar os espaços das emissoras. E quem moveu os pauzinhos para trazer o rádio de volta foi o antropólogo e médico Roquete Pinto, buscando adeptos até 1930. Foi quando a popularização do novo veículo de comunicação começou a acontecer.
A curadoria é da ex-secretária municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Helena Severo, numa exposição que ainda resgata jingles para reeleição de Getúlio, o seu discurso em 1º de maio de 1940, os locutores anunciando a invasão da Polônia por Hitler e, em 1945, a morte do Führer. Além da incansável discussão sobre os rumos da democracia no país durante a votação do Parlamentarismo, sim ou não.
São históricos o anúncio de uma invenção infernal nas praias de Copacabana, o biquini; o prefixo do repórter Esso, por Heron Domingues; o velório nacional no Maracanã na derrota do Brasil para o Uruguai na Copa de 1950; os áudios do primeiro programa veiculado por A Voz do Brasil em 1935.
Junto com Helena, o produtor de cinema Claudio Kahns divide a curadoria. Varreu o que acontecia entre 1941 e 1945 nas telas de cinema da Atlântida e da Vera Cruz, com atores como Cyl Farney, Herval Rossano e atrizes como Zezé Macedo e Virgínia Lane – que, dizem, seria amante de Getúlio. Também, mais de 20 filmes das cantoras nos anos 40, 50. Produtor de cinema, numa tela, Khans entrevista Fernanda Montenegro sobre a época das radionovelas, onde ela começou a carreira ainda como Arlette Pinheiro Monteiro, contando os malabarismos para atingir a sonoridade de um trote de cavalo, por exemplo.
Outro curador, Rodrigo Favour, que publicou biografias de Cauby, ngela Maria, Dolores Duran e sobre a Revista do Rádio, conta em outra tela a história do glamour das “Rainhas do Rádio”. A Rádio Nacional, que em 1956 tinha 670 funcionários, 10 maestros, 124 músicos, 76 cantores e cantoras, 106 radioatores, monopolizava maior audiência do que a TV Globo conseguiria mais tarde. Era ali que aconteciam programas como PRK30, novelas intermináveis como O Direito de Nascer, e onde brilhavam as rainhas, cantoras como Carmem Miranda, Marlene, Emilinha, Doris Monteiro, Dircinha Batista, Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia. Foram selecionadas 24 nesta exposição.
Alaíde Costa com 87 anos, e Claudete Soares estavam presentes na inauguração. Alaíde conta como sofreu por não gostar de cantar samba. “‘Como assim?’, perguntavam espantados, como se fosse a única opção para uma cantora preta,” ela relata o racismo que a acompanhou na carreira.
Com Claudete, o Observatório fez uma mini-entrevista:
OI– O sucesso chegou rápido para você?
Claudete Soares– Eu não tinha a altura da Maysa, nem era linda como Emilinha ou soprano como Dalva – era contralto, ninguém me chamava para os programas do Cesar de Alencar ou do Paulo Gracindo na rádio Nacional.
OI– Como você fazia?
Claudete– Ora, tinha de me virar e foi com Sivuca, um arranjador fantástico que gostava de música clássica, blues, jazz; eu era moderna e não sabia.
OI– Havia muito assédio naquela época?
Claudete– O sofá sempre esteve lá, o teste do sofá é antiiigo…
OI– Drogas?
Claudete– O sofá e a droga sempre rondaram a gente. Caía quem queria.
OI– Você se chateia porque hoje as rádios não tocam MPB de qualidade, como relata e sofre o maestro Julio Medalha?
Claudete– Eu não sofro, já estou no lucro, tenho mais de 80 anos, sou Escorpião com Aires, se não querem ouvir música boa é problema sexual deles e delas.
OI– Que conselho você daria para os jovens hoje?
Claudete– Ouçam! Escutem! Não esqueçam.
*Norma Couri é jornalista.