Essa gente que nos julga

A prática é antiga. O que surpreende é que continue sendo usada e abusada. Segundo a edição dominical do Estadão, em matéria assinada por Luiz Vassallo, “shows exclusivos com artistas renomados, jantar em cassino, baladas, coquetel com tudo pago em hotéis cinco estrelas, aluguel de lanchas com direito a espumante de brinde”. Mimos como esses têm sido comumente oferecidos a membros da magistratura e, em regra, custeados por alguns dos maiores litigantes do País.

Quer dizer: “Os patrocinadores de seminários e fóruns com representantes da Justiça têm interesses em causas que somam ao menos R$ 158,4 bilhões entre multas, indenizações e dívidas reclamadas”. E mais: “Esse valor se refere a algumas das mais importantes disputas judiciais até 2022 no Brasil sob o julgamento dos magistrados presentes nos eventos”.

O Estadão cita como referência o Congresso da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), que levou juízes, desembargadores e ministros de tribunais para Salvador (BA), em maio de 2022. O encontro foi patrocinado pela Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (Anab), pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), pela Associação Nacional dos Registradores e pelo Banco do Brasil, que compareceu com R$ 1,5 milhão.

A AMB justifica-se afirmando que faz “rigorosa seleção dos patrocinadores, descartando qualquer eventual tentativa de interferência na jurisdição”. Então, tá. Já o STF afirma que a participação dos ministros nos eventos “tem caráter acadêmico e sem nenhum gasto”. Então, também tá. O interessante é que há ministros, como Rosa Weber e Edson Fechin, que se recusam a participar de tais fóruns patrocinados.

O jornal cita ainda a iniciativa do Instituto Brasileiro de Insolvência (Ibajud), que levou juízes e ministros do STJ e do STF para o Algarve, em Portugal, em maio passado, cujo congresso terminou com um show em cassino. E também o evento promovido, em São Paulo, pelo Turnaround Management Association (T-MA), chefiado por diretor de uma mineradora em recuperação judicial.

Outra que é useira e vezeira em patrocinar eventos com magistrados, no Brasil, em Portugal e nos EUA é a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Ao mais recente, compareceram os ministros do Supremo Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Relembre-se que a Febraban é parte de um julgamento no STF sobre cobrança de PIS e Cofins que pode causar um rombo de R$ 115 bilhões à União.

Procuradas pela reportagem, as instituições patrocinadoras afirmaram que não remuneram os participantes ou debatedores e que “contribuem para a construção da imagem corporativa junto aos clientes e para o fortalecimento de resultados negociais da empresa” (Banco do Brasil). O Lide, comandado pelo ex-governador de São Paulo João Doria, também garante não efetuar pagamento de cachês aos expositores em suas iniciativas. No entanto, confessa que em eventos internacionais, como os realizados recentemente em Nova York e Lisboa, “os palestrantes viajaram a convite do Lide e, naturalmente, foi oferecido o custeio de transporte e hospedagem”.

Talvez o leitor mais jovem não saiba, mas houve tempo em que juiz era uma figura quase mítica. Dificilmente aparecia em público, apenas se manifestava nos autos e fugia de convescotes de celebridades como o capeta da cruz. Aceitar convites ou receber favores e presentes, nem pensar. A oferta seria uma audácia digna de imediata reação. Nos rigores da lei. Mas hoje isso é coisa do passado. Como a compostura, a honradez e a dignidade.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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