Janeiro

Eu testei negativo. Mas não tenho muito o que comemorar. Dois médicos me asseguram que tive a praga. Também acho. E de tudo o que mais me impressionou, além da boca que tornava horrível qualquer alimento, foi o mega cansaço. Como de uma hora pra outra nossa energia vai pro ralo e parece que nunca mais vai voltar

Não sei você, mas eu começo o ano fazendo planos. Menos glúten, mais ginástica. Mais leitura de livros e muito menos zaps. Viajar mais. Acho que todo mundo é mais ou menos assim. Antônio Maria, por exemplo, era. Meu mais novo ídolo. Foi com um prazer imensurável que li suas crônicas reunidas em Vento vadio. Elas salvaram meu final/começo do ano, dos mais negros dos últimos tempos.

Em 16 de janeiro de 1954, ele registrava seus desejos para o ano que começava na crônica Diante do espelho:

“As intenções de janeiro eram as melhores possíveis. Regrar a vida, metodizar o trabalho, dormir oito horas, guardar os domingos e festas de guarda, pagar as dívidas, juntar dinheiro, ler, emagrecer, estudar inglês, tirar férias, tomar banho de mar, detestar uísque, não fazer um samba sequer e adquirir, destas coisas e apesar de todas elas, uma espécie de tranquilidade a que, no Norte, chamam de tenência (sentido de prudência, precaução e firmeza).”

Depois de um tsunami de sintomas que se abateu em casa na virada do ano, entrei também em 2022 com as melhores intenções. Agora, vamos ver se a pandemia dentro da pandemia dentro do pandemônio vai permitir que os planos se tornem realidade.

Pense num sintoma. E ele se abateu por aqui. Febrão, cabeça pesada, coriza, diarreia, dor no corpo (forte), apetite zero, falta de paladar, mega cansaço. Tudo junto e misturado. Ômicron, influenza, flurona, doença cruzada? Vai saber o que foi. Meu filho, que estava em casa, teve vários desses sintomas, porém brandos, e testou positivo. Eu tive tudo mais forte e testei negativo. Sinais trocados em tudo e por tudo. O negativo é positivo. E o positivo é negativo. Não é assim? É bom que seja negativo. É ruim que seja positivo…

Lembro-me de uma fala no filme Desmontando Harry, de Woody Allen: “As duas palavras mais bonitas da nossa língua não são eu te amo, mas é benigno”.  Hoje podemos responder a quem pergunta sobre o resultado do teste: uau! Positivo –  testei negativo! Que embaralhamento.

Eu testei negativo. Mas não tenho muito o que comemorar. Dois médicos me asseguram que tive a praga. Também acho. E de tudo o que mais me impressionou, além da boca que tornava horrível qualquer alimento, foi o mega cansaço. Como de uma hora pra outra nossa energia vai pro ralo e parece que nunca mais vai voltar. Depois de praticamente boa, vencer uma quadra da rua com inclinação ligeiramente ascendente, que eu costumava fazer com os pés nas costas, agora era um obstáculo olímpico. E olha que tomei as três doses da vacina. Imagina se não tivesse tomado.

Mas a energia volta. É só ter um motivo de indignação – coisa não de todo rara neste país. No meu caso, ela aconteceu de cara com a própria empresa chamada por um familiar para realizar meus testes em casa. Um rápido e dois mais demorados, em dias diferentes. Os protocolos de higiene variaram conforme o profissional. O primeiro usou proteção no sapato e luvas na mão. A segunda não usou nada disso e tinha unhas de drag queen. A terceira vestiu avental, proteção de sapatos, luvas, proteção no cabelo. Tudo descartável, mas aparentemente não descartado e usado mais de uma vez. E ‒ pasmem! – nenhum dos três profissionais me pediu documento de identificação. Ou seja: poderia tranquilamente pegar um laudo no nome de outra pessoa. Reclamei por e-mail com a empresa, que nem sequer se dignou a me responder.

Voltando às boas intenções. Como Antônio Maria, penso em fazer gaveta de crônicas. Deixar umas prontas para qualquer imprevisto. Mas seria bom antecipar as obrigações? Pondera o grande Antônio Maria: “Porque se na quarta-feira eu fizer todo o serviço da sexta e morrer na quinta, eu trabalhei depois de morto”.

Melhor não. Deixa quieto. Não está nos meus planos morrer em 2022. Ainda assim, não quero também correr o risco de trabalhar depois de morta.  Caxiísse tem limite.

Em tempo: o informe no elevador do meu prédio de que havia caso de Covid no condomínio (no meu apartamento) foi substituído em boa hora pelo anúncio do nascimento do Tomas, primeiro filho do casal do apartamento 602. Viva o Tomas! Viva a vida! Mas logo em seguida este também foi trocado por novo aviso de que há pessoas com Covid no prédio.

Temos acompanhado o noticiário sobre a incrível propagação da ômicron. Quem não tem? Mas nem precisava. A amostragem doméstica é impressionante. Além de mim e de meu filho, minha irmã, minha cunhada, meu sobrinho, minha sobrinha, seu marido e os três filhos, todos foram contaminados. Detalhe: parte da família mora em São Paulo e parte no Rio. Então não foi o caso de um ter passado pro outro. Acho que não é exagero quando Margareth Dalcolmo diz que todo mundo vai pegar. Cuidem-se!

Saudações! E até a próxima.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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