Fajutos

Se você não leu na adolescência as desventuras de Holden Caulfield não pense que perdeu o bonde

A convite da editora Todavia, participei do relançamento da obra “O Apanhador no Campo de Centeio”. Se você não leu na adolescência as desventuras vertiginosas de Holden Caulfield (ele está sempre prestes a desmaiar porque se alimenta mal, bebe muito e percebe o mundo como se não tivesse pele), não pense que perdeu o bonde.

Eu reli agora, aos 40 anos, e senti todo aquele turbilhão de verdades eclodir novamente dentro da cabeça.

A busca por pessoas mais reais, por diálogos mais honestos e por ambientes menos afetados não tem idade. Aliás, o anseio por interlocutores mais fiéis à nossa sensibilidade e neurose só piora com o tempo.

O que continua me emocionando neste célebre livro de J. D. Salinger é uma imensa e incansável lista de FAJUTOS (adorei a escolha dessa palavra na nova tradução do mestre Caetano W. Galindo) que deprimem o protagonista pra diabo: garotos com roupinhas “estudo em uma escola de elite”; pessoas que falam “claro que passa”; atores ou músicos que são tão bons que sabem que são muito bons e por isso perdem a graça; pessoas que vivem preocupadas se o carro tem um arranhão, pessoas fechadas em grupos e incapazes de uma conversa inteligente.

Durante a leitura e nos dias seguintes, me tornei compulsiva em elaborar a minha lista de fajutos. Não foi exatamente prazeroso lidar com minhas idiossincrasias sociais, mas foi o efeito inevitável deste que é uma das mais importantes obras da minha formação como escritora (que busca muito mais uma voz sincera e humana do que uma boa história).

O primeiro item sou eu mesma. Já deveria ter entregado meu livro para a Companhia das Letras há anos. Penso nisso o dia todo. Não durmo direito. Estou com gastrite, e a colite nervosa voltou. No entanto, me distraio com vidas vazias de Instagram, planos de fama e riqueza e freelas tolos.

Sou tão fajuta quanto a pessoa que tem, na mesa de centro da sala, livros que ostentam hotéis de luxo em vez de literatura. Neto de rico que não trabalha porque é contra o sistema e produz a própria kombucha. Gente que faz chá de lingerie, de bebê, de fralda, de panela, de bodas… Parem de querer que os outros comprem todos os utensílios da sua casa, amigos! O cara que vendeu o carro porque é supercontra os carros, mas pede carona pra todo mundo. Eduardo, o rapaz que me prometeu sexo tântrico mas me deu o mesmo prazer demorado que uma fila pra tirar Visto americano. Garota que afrescalha a voz para mostrar que já nasceu com conta bancária. Mulher que faz o parto toda maquiada e com o cabelo arrumado. Moça que não toma anestesia no parto, porque acha que sentir dor faz dela uma mãe melhor.

Pessoas que usam termos como “roubalheira louca” e acham que estão arrasando na conversa sobre política. Pessoas que se fazem de misteriosas. Quando bota de neve entra na moda no Rio de Janeiro. Homem que prefere mulher sonsa, porque essa não dá trabalho. Mulher que prefere homem que prefere mulher sonsa e se faz de sonsa e de mulher que não dá trabalho. Pessoas que falam a grande e a quente e, sobretudo, que falam linha tênue, distopia, mais potência, lúdico e “o brincar”.

Gente que leva a língua até a comida antes de levar a comida até a boca. Que faz barulho com chiclete e com bala. Que espirra gritando, boceja cantando e explica o filme inteiro no cinema. Gente que não faz porra nenhuma o dia inteiro, mas sempre responde que está em reunião ou precisava resolver coisas “no banco”.

Ele, os filhos dele, a mulher dele, seus ministros, seu guru, seus eleitores.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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