Semiótica da fala picotada

Os telefones estão horríveis. Às vezes, é como se estivéssemos falando com uma galinha goga

No começo, achei que o problema era só meu —a ligação que começava a picotar assim que eu ou a outra pessoa dissesse “Alô”. Um dos dois parecia estar falando em código sem que o outro conhecesse a chave. Como sou um dos últimos protossauros que usam telefone fixo, atribuía-me logo a culpa e saía pelo apartamento em busca de um lugar melhor para falar. Às vezes funcionava, quase sempre não. Até que fui informado de que essa conexão meia-bomba não se limitava às relações entre um celular e um fixo. Dava-se também entre dois potentes celulares.

É claro que o interlocutor que está falando picotado só fica sabendo disso quando o outro o informa —porque, aos próprios ouvidos, sua dicção é digna de um locutor da antiga BBC. Ao ouvir o outro dizer que não está entendendo, ele apenas fala mais alto e pergunta “Está entendendo agora?”, frase esta que também sai picotada e é incompreensível. Dá-se o mesmo quando a voz picotada é a do outro e ele nos pergunta a mesma coisa.

Não se pode saber, mas imagino haver casos em que os dois falem picotado ao mesmo tempo e a frase “Está entendendo agora?”, pronunciada pelos dois lados, seja desentendida por ambos.

Um amigo meu, chegado à vida rural, campestre e pastoril, comparou o som de um telefonema picotado ao de uma galinha goga [pronuncia-se gôga] —quando seu cacarejo dispara e ela corre desesperada pelo terreiro, com o gogó subindo e descendo sem controle. Já outro amigo, perito em semiótica, me explicou que a ligação picotada é como falar somente com as consoantes. Mas o que se pode fazer facilmente na linguagem escrita —qualquer um entenderá COPACABANA ao ler CPCBN— é impraticável na linguagem oral. Ao ouvir alguém dizer do outro lado ​CPCBN, será como se estivéssemos conversando com a dita galinha goga.

Tudo bem. Nunca é tarde para aprender mais uma língua.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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