Nos fugazes momentos que a gente pode falar, de lado, boca aberta, inclinado para cuspir na loucinha, o dentista enrosca em qualquer palavra acidental para desfiar trivialidades ao modo épico helênico. A extensão sempre me leva a imaginar o anteprojeto do rascunho do gênesis seguindo em ordem inalterável e ininterrupta até as notas de rodapé do apocalipse, versões aramaica, grega e latina. A mínima, inocente e acidental palavra do cliente ativa o estopim retórico do dentista. Tive essa tia dentista, que não me tratava, mas me destratava de tanto falar. Era perguntar “tudo bem, tia?”, ela contava, do começo ao fim, com detalhes desnecessários, redundantes e expletivos.
Minha tia, dentro e fora do ambulatório, não tolerava que me arvorasse em editor de blog, revisor da Seleções, instrutor do Twitter, podando o palavrório, desbastando os excessos cansativos que davam nós ao fio da meada. A tia nunca antecipou o final da narrativa emaranhada que se esvaía nos detalhes. Para ela a narrativa obedecia, cega e inflexível, à sequência direta de começo, meio e fim, como filme antigo. Quando fala, dentista obedece aos protocolos e ritos da arte, como na obturação. Não se interrompe, acelera ou exige ordem lógica e temporal ao discurso dentário, que, feito vinil antigo ou CD novo, quando enrosca no risco, a agulha volta ao início do repertório.