Feliz Aniversário, Rita Pavão!

Há uma tendência natural em santificar ou glamourizar as pessoas mais ou menos públicas que morrem cedo. A pessoa que morre passa a ser um símbolo, um mito, um ídolo, às vezes – até uma santa. E a família, despreparada, se vê de repente obrigada a alimentar uma coisa assim meio mítica.

A bailarina Rita Pavão nunca foi santa – ainda bem – e é por isso que escrevo essas linhas aqui bebendo um vinho tinto “Santa Rita”, vinho que na realidade nunca chegamos a tomar juntas. Só para profanar o momento. Senti necessidade hoje de homenagear a minha amiga que, tanto na vida como na morte, conseguiu me deixar em constante estado de perplexidade e encanto.

A verdade é que a Rita Pavão era minha companheira. Não no sentido de parceira amorosa ou coisa assim, mas no sentido de acompanhar, seguir junto, ir para o mesmo caminho. Estar no mesmo lado da sociedade. Sim, porque a sociedade tem lados. Quando conheci a Rita, eu tinha 12, ela 13 anos. Por sua atitude irreverente, já era famosa no colégio Sion, um colégio de alunas bem comportadas, meio freiras em potencial. Desde aquela época, ela já tinha aquele jeito especial de andar, com as pernas jogadas para frente e a cabeça suavemente inclinada para a esquerda. Quando estava com pressa, abaixava a cabeça. Falava alto. Ria de orelha a orelha. Rita já quebrava barreiras, fazendo questão de mostrar que fazia apenas o que tinha vontade de fazer, em vez de simplesmente obedecer aos padrões estabelecidos. Rita se sentia bem com ela mesma e por isso, já fascinada, me aproximei dela.

A escritora Martha Medeiros escreveu uma vez sobre pessoas habitadas. E eu gostava da Rita justamente porque ela era uma pessoa habitada. Há pessoas que são e outras, mesmo que queiram, não são. Explico: em francês, existe uma palavra coloquial “habitée”, (une personne habitée) que mais ou menos quer dizer “pessoas que fazem a diferença”. Uma pessoa pode ser legal, íntegra, correta, bonita, ter até senso de humor, mas se não for habitada, não marca presença e ainda coloca as que são habitadas para correr. Não faz diferença. Quando morrem, são rapidamente esquecidas.

As pessoas habitadas estão, por assim dizer, no lado oposto das obedientes. A diferença entre as pessoas habitadas e as obedientes é que ao contrário das obedientes, as habitadas não estão no mundo apenas para reforçar as normas da cultura dominante, sem antes um intenso questionamento interno. Às obedientes falta uma ebulição que as salve da mesmice, do comportamento padronizado, igual as nossas bisavós. Chegam até dar a impressão de que ninguém mais mora dentro daqueles corpos. São despossuídas delas mesmas, desabitadas. Vivem por puro hábito.

As pessoas habitadas são aquelas possuídas por elas mesmas. Estão cheias de personagens dentro delas o que lhes provoca um constante formigamento. Têm uma enorme vida interna. São lotadas de dúvidas, angústias, incertezas, depressões. Justamente por terem tudo isso, são pessoas que produzem. Fazem de suas “inadequações” uma força inesgotável de criação. Não têm medo de transgredir e não escutam as vozes de fora, já que são habitadas com tantas vozes internas. Não recuam diante de opiniões contrárias. Não obedecem nem se ajustam automaticamente a comportamentos padronizados em troca de uma vida material confortável. São pessoas que surpreendem com um gesto, uma roupa, uma profissão, um relacionamento fora do padrão social. Fora do esquema. E encantam. Encantam pela verdade pessoal que defendem. Encantam pela autoconfiança. Encantam pela originalidade ingênua que possuem. Além disso, não são vítimas da solidão já que são possuídas de tantas personagens. Não precisam de muitas outras vidas em volta para preencherem suas vidas.

As pessoas obedientes – do outro lado da moeda – são pessoas comuns, que vivem na trivialidade, seduzidas pela rotina confortável da vida social e das alternativas limitadas. O material ocupa um lugar de destaque enquanto a originalidade desaparece. A criação é inexistente. Não há nada novo, é tudo repetição. Todas se comportam dentro da normalidade de uma cultura civilizada. Têm uma segurança opaca.

Aí, a diferença das pessoas habitadas que emanam um brilho próprio, ousam, sonham, fazem. Inovam. Pintam o cabelo de cor de rosa. Tem um caso amoroso com a arte. Fazem filmes, escrevem livros, produzem shows, cantam no palco, fazem as cores saírem dos quadros, a escultura falar, fazem da vida uma coreografia única. Mudam a moda, o comportamento. Os padrões. Brilham mas assustam. Interessam. Não são óbvias. São inofensivas, cujo único mal que possam fazer é fascinar e levar a sociedade a dar um passo novo e para frente. Está aí o documentário “Nunca Houve uma Mulher Como Rita” feito pelo Tiomkim, que prova isso.

Eu tive a sorte de ter convivido com a Rita Pavão, uma pessoa completamente habitada, inofensiva, possuída de inquietações, questionamentos. Tinha uma constante efervescência, aquela mesma que as obedientes não possuem. Rita era habitada de suas dores e paixões. Projetos. De tanta criação e ousadia, de tanto usar o movimento, fez do movimento o seu grand finale. O pulo do cisne. O solo final. Um corpo lançado sozinho ao ar. Um silencioso desespero. As pessoas habitadas geralmente saem de si mesmas. Voam. Ultrapassam. Como escreveu o poeta Mario Quintana, “suicidas são anjos que pulam – mas não tem asas”. E o budismo nos ensinando que devemos nos curvar em silêncio diante de um gesto extremado assim. Por quê? Não interessa, não importa. Vamos continuar nos encantando com ela. A Rita Pavão sempre teve atitude. Fez e continua fazendo a diferença. Transcendeu a herança cultural recebida.

Feliz Aniversário, Rita. Nós, os tantos amigos/as, vamos hoje celebrar. E haverá bolo suficiente para todos os personagens. Os internos e os externos. Todos os personagens internos habitados de Rita que, de repente, foram obrigados a sair de cena. Ou não.

Bebeti do Amaral Gurgel, jornalista e escritora

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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