Grisalha

Fernanda Torres – Folha de São Paulo

As velhinhas das vans, grupos organizados de senhorinhas que ainda mantêm o hábito de ir ao teatro, lotam as salas de espetáculo para alívio e desespero da classe. A ausência de jovens, ou mesmo adultos grisalhos entre a plateia, é sinal da crise que se abateu, não só no teatro, como nos demais veículos ligados à arte e à comunicação.

A venda de livros colapsou até na culta Inglaterra. O último autor a vender mais de 1 milhão de exemplares foi Ian McEwan, com “Reparação”, e lá se vão 15 anos.

O papel jornal se tornou tão obsoleto quanto o de fax, e os profissionais da imprensa são aconselhados a alimentar seus blogs com o empenho de uma criança que dribla o óbito de um tamagotchi.

Com exceção do biquininho de fita isolante e da petulância do traseiro sem Photoshop de Anitta, poucos são os que estão preparados para sobreviver na nova ordem.

Comecei o ano de 2017 ainda crente no mundo como o conheci, adentro 2018 certa de que ele não existe mais.

A consciência me veio numa reunião com o cientista Fabio Malini, coordenador do Labic (Laboratório de estudos sobre Imagem e Cibercultura). Malini projetou, num telão, sua pesquisa sobre a circulação de dados na internet e eu, que esperava um Power Point jurássico, pasmei diante das bolhas expandidas em 3D, semelhantes a uma tomografia computadorizada.

Esqueça a antiga função entre dois eixos, esqueça o mapa do Brasil com o censo populacional; para traduzir o caos em que estamos metidos, só mesmo um diagrama modelo Big Bang, com bilhões de vetores aleatórios representando o vaivém de mensagens e posts.

A inteligência artificial impera, e levante a mão quem não treme diante de um algoritmo.

Os robôs replicantes, responsáveis pelas primeiras infecções virais de notícias, já se tornaram tão demodês quanto a enferrujada lataria de “Perdidos no Espaço”. Fáceis de serem detectados, eles descansam em paz no mesmo asilo dos Nexus 8, de “Blade Runner”.

As “fake” e “hate news” de hoje se valem de exércitos de humanos mal pagos, trabalhando em conluio com as máquinas. Na tomografia do telão, esses centros irradiadores de meias notícias se traduzem em massas compactas, cercadas por raios conectados a outros aglomerados, criando planetas gigantes, júpiteres de informação, batizados com os nomes de seus supostos usuários.

Capazes de postar com a velocidade de centenas, milhares de mensagens por minuto, tais entidades ofuscavam a presença de diminutos planetas reconhecíveis.

Todos os jornais, revistas, rádios e canais de televisão onde escrevo, trabalho, ou de que me valho para lançar livros, séries, filmes e peças; todos os veículos que, por décadas, li, vi ou ouvi não passam de tímidos pontos nas vísceras do alien virtual da pesquisa de Malini.

De volta ao refúgio do lar, busco sentido na companhia de “Os Maias”. A cabeça branca, mal disfarçada pela tintura 6, reluz na raiz do cabelo. Sou Carlos e seu avô Afonso, sou João de Ega e Maria Eduarda, última remanescente do que nasceu e floresceu e morreu, entre os séculos 19 e 20.

Eu sou a nova velhinha da van.

Alô, 2018. Alguém me lê? Alguém me escuta? Tem alguém aí?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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