Jair Bolsonaro comete crime de responsabilidade até quando respira. Não veem os cegos, os cúmplices e os que, no Congresso e no governo, temem que o Brasil pegue fogo – esquecidos que têm um pequeno Nero a seu lado. Sim, porque o ato de cancelar a assinatura do jornal em retaliação é crime de responsabilidade. A demonstração baseia-se na Constituição, essa que insiste em sobreviver.
Em tempo: Donald Trump, declarada paixão de Jair Bolsonaro, que o esperou por uma hora em N. Iorque só para dizer a frase sugestiva: “I love you, Mr President”, fez o mesmo com o The New York Times. Dois flatos de pernilongo escondidos na cortina. A Folha e o Times circulam, juntos, há quase duzentos anos. Bolsonaro e Trump duram quatro pela graça de Deus e a estupidez dos homens.
Cancelar assinatura de jornal significa duas coisas: o jornal não tem utilidade, portanto nunca devia ser assinado; se o jornal foi assinado, tinha utilidade. Fala-se aqui de utilidade pública, o pressuposto de toda e qualquer ação de governo. Cancelar a assinatura, portando, revela desvio de finalidade num aspecto desse pressuposto. Pressuposto, curioso, é sinônimo de orçamento público.
A assinatura do jornal representa despesa, pública, de novo, está prevista no orçamento, na rubrica, ou classificação, adequada. Como despesa, pode ser suprimida, sem dúvida, a Constituição permite, com a elasticidade da discrição administrativa: na avaliação de prioridades, o Estado suprime uma despesa, no caso a de assinatura do jornal. E aí vem a pergunta que a abulia cívica não faz:
Qual a prioridade no cancelar a assinatura de jornal que critica o presidente? Uma só, e nem um pouco legítima: a de impedir a leitura do jornal dentro dos órgãos públicos pelos funcionários que agem pelo governo – para não agirem contra o governo, ou pelo menos não tomarem conhecimento do que se diz do governo. Isso tem nome, melhor, dois nomes.
O primeiro nome é o cerceamento à imprensa, livre até o momento, apesar dos desvarios verbais do presidente em pessoa e nas redes sociais e na guerrilha comandada pelo filho 02. Um juiz do STF sempre dirá, nas dobras das filigranas, que a interpretação da lei “abre um elastério” (só a fauna jurídica usa a palavra) para não caracterizar atentado à liberdade da imprensa.
O segundo nome é o trivial desvio de finalidade administrativa, também política no caso, que no Brasil tem o mesmo vigor punitivo que antes teve o crime de adultério no código penal: as pessoas aceitam os dois, sorriem complacentes e tolerantes, na admiração velada pelo comportamento que revela ousadia, iniciativa, determinação, indiferença e destemor pelas consequências.
Portanto, se a assinatura do jornal merece ser cancelada, que o seja por prioridades financeiras, como essas que o ministro Guedes usa para abreviar a agonia de aposentados e pensionistas do INSS. Cancelar a assinatura por um capricho pessoal de retaliação do presidente é ato autoritário, como digo ao início, de ditadorzinho de matriz caribenha, um Fidel da direita.