Eu tinha medo de dormir e aprendi a me acordar dentro do sonho, quando pressentia a virada do enredo
O meu caso ocorreu numa filmagem. Testes de antígeno na chegada, todos negativos, só que um de nós positivou durante o dia e, como ator não usa máscara para trabalhar, voltei para casa em má companhia.
Não foi a primeira e, ao que tudo indica, não será a última vez. Vacinemo-nos e acomodemo-nos.
A Covid 2022 é uma licença do mundo. Nada se espera do doente, que não o isolamento e a cura. E a reclusão deve ser mesmo obrigatória, porque o corpo se transmuta numa usina de expelir perdigotos.
É abdução. Espirros pornográficos, embebidos numa coriza Foz do Iguaçu, baba alienígena que a tudo adere e contamina. Quando não mata, a Covid é uma prima grossa da gripe.
Em dezembro de 2021, a pena foi de duas semanas em regime fechado, sendo que ainda cumpri três meses de perda de olfato e risco de trombose. Passou. Agora, juram os doutos, entrarei no semiaberto em uma semana, isso se a fatiga crônica, a confusão mental e a parada cardíaca não alongarem, ou encurtarem, o processo.
Padecer de Covid é como estar vivo nos dias de hoje, você se sente mal o tempo inteiro, mas é suportável, se não pensar em demasia no que ainda pode acontecer.
AVC, cardiopatia, golpe, guerra, chacina, cataclismo climático. As ameaças concretas são tantas, e de tal magnitude, que é preciso ignorá-las para levantar da cama.
Não prego a alienação, mas aconteceu comigo. Foi depois da invasão da Ucrânia, desenvolvi uma aversão preocupante ao noticiário, aos debates, prognósticos, análises e previsões.
Sêmele, mãe de Dionísio, foi pedir a Zeus que se mostrasse a ela em todo seu esplendor e morreu torrada pela irradiância olímpica. É como eu me sinto, às vezes, diante da televisão, cozida pelas más novas. Não culpo a imprensa, são os fatos mesmo que estão de arrepiar.
Sem meios para barrar Putin, demover um terço da população do país da sua intenção de voto, e impedir furacões e pragas, acomodei-me a esse não futuro do presente. Fui levando, até perceber que não sonhava mais. Não se desiste do porvir impunemente. Já escrevi sobre a minha pobreza onírica aqui, que melhorou, sem voltar a ser o que era.
“Oráculo da Noite”, de Sidarta Ribeiro, faz uma breve história do sonho e da ciência do sono. A vantagem evolutiva do sonhador, explica o neurocientista, é a de experimentar sentimentos, planejar estratégias e medir riscos no ambiente seguro da mente.
O corpo inibe as sinapses de movimento, ativa as da memória e o cérebro se ocupa de treinar, de enfrentar, sentir e calcular as probabilidades de êxito ou fracasso na caça, no amor, no perigo.
César, Touro Sentado, Luther King e Constantino sonharam grande e pesado.
O sonho, portanto, como acreditavam os antigos, aponta para perspectivas futuras. Mas e quando não se enxerga nenhuma, ou as que estão à vista, durante a vigília, se deseja evitar? Adoece-se. Não sonhar, dormindo e acordado, é sintoma grave.
O sonho exige silêncio e introspecção, artigos raros desde que nos ligaram em rede. Sidarta pensou que a indigência onírica fosse fato consumado na maturidade, até desligar do mundo e, acampado à beira rio numa floresta erma, ser agraciado com um sonho jovem e lisérgico.
Fui uma criança dada a pesadelos traiçoeiros, tramas que começavam bem e, do nada, guinavam para o horror.
Eu tinha medo de dormir e aprendi a me acordar dentro do sonho, quando pressentia a virada do enredo. A
técnica espantou os maus espíritos e embalei um longo período de paz sonífera, até notar o apagão recente. O sonho lúcido é um talento que abandonei na infância e gostaria de recuperar.
Isolada no quarto, na lerdeza do dia acamado, com o raciocínio oco e um torniquete de dor de cabeça a me pressionar os miolos, durmo e deliro. Peço perdão pelo vago da crônica. Culpo a moléstia e deixo de objetivo a pergunta: Você, leitor, como tem sonhado?