Foca o limão

Ou eu me agarro às picuinhas ou vou sair pelas ruas gritando

Eis uma lição que aprendi dos mais velhos: em vez de se desesperar com o descalabro da conjuntura global, concentrar a energia em irritações minúsculas. É como se, para ignorar o incêndio na casa, você focasse o desalinho de um quadro na parede. Atingir este elevado estágio de consciência não é fácil: requer a união de técnicas milenares do budismo tibetano com décadas de neuroses bem cozinhadas em  banho-maria. Batizei o processo de “mindfulneuroseness”.  

Mestre do “mindfulneuroseness”, meu avô, aos 90, no leito de uma UTI, não foi acometido por grandes comichões existenciais, tipo: “Deus existe?” ou “Do alto deste mirante, a minha vida faz algum sentido?”. Não. Ao aproximar-se do abismo, sua maior preocupação era a introdução do VAR no Campeonato Brasileiro de Futebol. Mudanças nas regras de arbitragem da CBF o salvaram do desespero diante do vazio. Se isso não é sabedoria, não sei o que é.

Também venho tentando me proteger do mundo lá fora cultivando nas jardineiras das minhas pálpebras algumas flores de obsessão. Esta semana, por exemplo, consegui calar o grito de estupor diante da placa da “Aliança pelo Brasil”, feita de munição, revoltando-me com uma nova moda dos restaurantes. De uns tempos pra cá, se você pede a Coca com gelo e limão, o garçom pergunta: “espremido ou em rodela?”.

Quando foi que começou esta palhaçada? Quem foi a primeira criança mimada que inventou de pedir limão espremido? E quem foi o primeiro adulto irresponsável que, em vez de mandar o cidadão aceitar o limão em rodelas como todos antes dele desde a invenção da Coca-Cola, trouxe uma mini-limonada
num copinho de cachaça?

Quem foi, também, que resolveu colocar hidratante na pia do lavabo? Você aperta o que acha que é sabonete líquido, esfrega as mãos e, em vez da esperada lisura espumosa, é como se tentasse lavar-se com guacamole. Durante um segundo, há um hiato cognitivo: a realidade parou de funcionar conforme suas regras, algo se rompeu na cadeia da normalidade. Aí cai a ficha: é hidratante. O sabão está do lado.

Pra que isso? Se alguém tem um problema de pele que requeira constante hidratação, deve levar seu próprio hidratante no bolso, não esperar encontrá-lo no lavabo da casa alheia.

“Digite o mês da data do seu aniversário”, pede-me o site do banco e minha vontade é ligar pro gerente e gritar “não é o ‘mês da data’, basta O MÊS!”. Perguntar “o mês da data” é tipo “Qual é a graça do seu nome?”. A pergunta não faz sentido nem se o seu nome for Um Dois Três de Oliveira e Quatro, pois neste
caso a graça será evidente.

Secador de mão a vento. Qual o problema com o papel? Papel é biodegradável. Feito com madeira de reflorestamento. Seca em um segundo. Ao passo que se você vai ao banheiro do cinema e encontra um desses secadores de vento, perde a sessão. Só lá pelos créditos, após desperdiçar 1 bilhão de kilowatts, as mãos irão secar.

Cazzo, o mundo acabando e este colunista resmungando por causa de picuinhas?! Exatamente. Ou eu me agarro às picuinhas ou vou sair pelas ruas gritando: “Vocês não estão vendo o que está acontecendo?! A Amazônia queimando! A temperatura subindo! Sessenta mil pessoas sendo assassinadas todos os anos no Brasil e o presidente lançando um partido cujo número é três-oitão? E o Trump?! E a cracolândia?! E as crianças nas ruas?! Ninguém vai fazer nada?!”

Eu vou: foco no limão.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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