Da crise socioeconômica decorrente da pandemia da Covid-19 emergiu um Brasil de famintos. À sociedade historicamente desigual somaram-se a debilidade das políticas públicas do governo Jair Bolsonaro, o desemprego recorde, a informalidade excessiva, a carestia. Ainda ontem, o IBGE apresentou os resultados de junho da inflação oficial.
Em 12 meses, os preços saltaram 8,35% —o IPCA não subia tanto desde setembro de 2016, quando acumulara 8,48%. Mais dramática é a escalada no custo dos alimentos, 15,3% de julho de 2020 até o mês passado. O arroz ficou 48% mais caro; o feijão-preto, 22%; as carnes, 38%; o leite, 11%; os ovos, 6%. O botijão de gás encareceu 24% em um ano e chega a custar R$ 115 em comunidades do Rio de Janeiro e R$ 125 em Mato Grosso. É quase o valor do recém-estendido auxílio emergencial para famílias unipessoais (R$ 150).
O país retirado do Mapa da Fome da ONU em 2013 chegou ao fim do ano passado com 19,1 milhões de habitantes em privação de acesso a alimentos, estimou inquérito da Rede Penssan. São dois Portugais de miseráveis, que organizações da sociedade civil, desde o início da pandemia, se apressaram a acudir por meio de arrecadação de recursos e distribuição de cestas básicas. Para ficar em três exemplos, o Brasil Sem Fome, da Ação da Cidadania, entregou mais de 19 mil toneladas de alimentos a 7,8 milhões de pessoas; o projeto Mães da Favela, da Cufa, 31.900 toneladas entre cestas físicas e digitais (vales de R$ 100) a quase 10 milhões; a campanha Tem Gente com Fome, da Coalizão Negra por Direitos e parceiros, encerrou no mês passado a segunda fase de doações a 222.895 famílias em situação de vulnerabilidade.
No biênio 2017-18, o IBGE estimou em 84,9 milhões o total de brasileiros com algum grau de insegurança alimentar. O inquérito Penssan calculou que 116,8 milhões de pessoas já não tinham acesso permanente à comida, em fins de 2020. “Sabemos que, desde 2015, a taxa de desemprego vem aumentando progressivamente, e a renda média caindo no mesmo ritmo. Mais recentemente estamos vivendo a alta no preço dos alimentos. Tudo isso ganhou dimensão dramática com a pandemia e com a falta de políticas públicas. Vivemos uma situação em que os mais vulneráveis socialmente estão sujeitos não apenas às carências alimentares, mas também a maior sofrimento mental”, analisa Ana Maria Segall Corrêa, professora aposentada do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, pesquisadora e membro da Rede Penssan.