Forno & Fogão

Minha mãe, que era uma cozinheira de quatrocentos talheres, insuperável na igualmente insuperável culinária cabocla, costumava decretar, definitiva, que jamais honraria a cozinha quem não soubesse fazer, com talento, um arroz branco.

Desnecessário acrescentar o sublime arroz de D. Cida — clássico, sem ademane, a nua simplicidade de um haicai. De se comer puro, só ele, feito fosse o prato principal.

Arroz incrementado, segundo ela, era tudo, menos arroz. Ou então, ironizava, abobado risoto colorido com vergonha de ser arroz… Xiita, a minha saudosa velha, nas coisas e loisas da cozinha. Frango, só o caipira; milho-verde, só o colhido no quintal, ou vindo da roça.

Minha governanta, a germana Jesse Brek, que, face ao tema, se não aparecer aqui, é capaz de entrar em greve, anda a concorrer com Matisse na disposição da mesa cá no Palacete do Tico-Tico. A cada refeição, um arranjo floral. Esses tempos, creiam, conseguiu montar um sol modernista, com pétalas de cebola e compridas tiras de cenoura. No centro, o redondo recorte de uma fatia de berinjela.

Se minha mãe era xiita no conteúdo, Frau Brek é uma fundamentalista do visual culinário. Como os japoneses, acha que a gente come primeiro, e antes de tudo, com os olhos. Boca, paladar, e até dentes, são importantes, mas vêm depois, se é que interessam vir. O que importa é a beleza inútil da poesia.

Por falar nisso, dizem, por aí, que nosso Dante Mendonça é um menestrel do forno e do fogão. Ainda não me foi dado provar suas iguarias. Mas sei que há um frango que é dele a melhor estrofe. Se é que não trouxe da Itália, onde passou as férias, e nos deixou em enorme vacância, inédito pitéu, prestes a ser anunciado…

Eu, de meu lado, quando budista, com o propósito de seguir o preceito de que todo homem deve entrar, ao menos uma vez por semana, na cozinha, tentei alguns pratos. Sou bom de frango-xadrez e não me saio de todo mal em algumas carnes ao shoyo. Aprendi que está no tempo exato de cozimento o segredo da comida chinesa, que tem de passar pelo estômago com a leveza de uma garça de Kobaiashi Issa.

Perdi o budismo e a paciência, mas não perdi o gosto por esta culinária que, embora os preços abusivos, ainda a freqüento, com a parcimônia que me permitem a disponibilidade e o bolso; mais o bolso que a disponibilidade. E ando com saudade do porco agridoce do adorável Kazuo Hidecki.

Em matéria de comida, saudade tenho sempre, e de muita gente — do Jaime Lechinski e seus macarrões à bolonhesa; dos enfeitiçados rosbifes do saudoso Gilhobel de Camargo, mestre dos mestres; das irrepetíveis sopas-de-cebola do Jamil Snege, que chegou a ganhar as páginas da revista Claudia; das peixadas do Mazzinha; do gulache do Gilberto Rosenmann; do steak au poivre da Gleuza Salomon.

Agora, saudade, mas saudade imperecível, leitor, esta é do arroz de minha mãe.

Crônica de Wilson Bueno para O Estado do Paraná — 6 de abril de 2008.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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