Eu que o diga, rio meu, na movimentação dessa caçada aqui no escuro. É metralha e ódio; sangue e ciúmes; de amor, estas histórias – atravessadas de facas, de balas. Bom Ele era, Talhoto, de coração franco e verdadeiro. Margô: bem apanhada de corpo, os seios firmes, os dentes detrás dos lábios, te juro, de tão brancos, luziam. E tinha o amendoado dos olhos – de um verde tão verde que até parecia o reflexo do Canhanha que pelo Vizir passava, de margem a margem, espessa esmeralda.
Pois só ali, relembro, me dei conta inteiramente do ocorrido e então aquele aperto, de novo a mesma pergunta-espinho – onde a queda, o baque, o abismo? Nadador, Talhoto, isto Ele era – nascido e criado à beira dos rios de todo o país do Eldorado del Paraná, um continente de flor e água, aonde as antas selvagens, às manadas, aos esbarrões e aos corcoveios, afundavam os cascos no barro dos campos; ou, em outras distâncias deste país primeiro, nas tranqueiras se enrola e se enrosca a terrível labréu, coral de fatal peçonha; sem reza, mesmo a mais braba, que dê conta da morte que ela produz – apesar de instantânea, uma morte horrível, Talhoto, nem queira saber, cheia de uivos e de gritos. O veneno da labréu, dizem , inventado pelo Demônio. Tem quem conte, aliás, por estas margens e paragens, que a labréu é dos criames dele, lá onde ele mora, Deus nos livre e guarde, no oco emaranhado dos escondidos da floresta, o Turvo.
Duas já vi – será que, Virgem Maria!, escapadas do criame do Chifrudo, perito Talhoto? –, nadando, vermelho-sangue nadando, próximo de Imbiara, ali onde o Chauá se espraia em lago, e nem mais parece rio o Chauá, tão redondo e claro, conformado entre os queimados morros do Cerro Agulha, ali eu e Ele pudemos observar, acho que um casal de labréu, Talhoto. Quem há de distinguir se macho ou fêmea? Ligeiras, ariscas, uma ao lado da outra cruzando a água e deixando atrás de si, na superfície branca do Chauá feito laguna, um rastro rubro-vermelho – dizem os índios que de sangue e mortal veneno. Remou para vante, meu Canoeiro, temeroso de que o líquido vertido por elas, ainda que em meio às águas do Chauá, rarefeito, em nosso remo, mesmo ao de leve, se misturasse. Nunca se sabe das coisas do Demo as suas ardilagens. Melhor precaver, Talhoto, que as labréus, ainda conforme os índios, só de vê-las pode que torne aziago um destino.
Não acreditei; ao menos daquela vez, não acreditamos. Desviamos apenas, a bombordo, Ele a selar a testa com um sinal-da-cruz e a beijar a santinha que de tão pequena se perdia, pendurada da corrente, no peito que Ele tinha – tinha ou tem, Talhoto? –, por entre o negro alvoroçado de pêlos, cabeludo. Ele, meu Canoeiro, que hei de encontrar, um dia, nem que seja o seu nome soando nos penedos que de granito gelam o Cravéu, antes de Santa Ifigênia, o rio apertado a escorrer entre os paredões, verdoengo, misterioso, no sudoeste que ali muge e estertora, soando em eco o nome Dele.
Só Ele, Talhoto, a me fazer, outra vez, Canoa.