Geladas

A água saía do poço, gelada, passava de um balde para o outro – e eu carregava com dificuldade para o banheiro minúsculo, duas mãos agarradas na alça, corpo retesado para não arrastar no chão. No cubículo, pés no cimento queimado e frio, privada que ocupava quase todo o espaço, porta de tábuas entre as quais as frestas permitiam ver se alguém queria me espiar pelado. Não pensava nisso. Pegava uma caneca feita com sobras de lata de óleo, enfiava dentro do balde e ficava ali parado com ela na mão direita sem coragem despejar o conteúdo cabeça abaixo. Até que vinha o momento da decisão e… O sabonete era esfregado rapidinho, em todas as partes do corpo. Olhos fechados e novas canecadas com muitos arrepios. No frio era assim também. E na vila fazia frio! Depois vinha a sensação boa, tudo enxugado, corpo limpo, sangue pulsando. Até hoje o banho continua assim, frio, apesar do conforto das duchas e do aquecimento a gás. Me faz sentir vivo – e disposto para enfrentar as geladas da vida.

Do blog Cabeça de Pedra

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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