A pesquisa do Ipea que tanto bafafá causou desde que surgiu na semana passada não despertou nesta humilde datilógrafa uma insatisfação extra.
Para falar a verdade, ao tomar conhecimento de que 65,1% dos entrevistados (entre homens e mulheres) concordam que mulheres com roupas provocantes “merecem ser atacadas”, não dei a menor bola.
Sabe por quê? Porque o que o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada nos contou não é novidade. Não há nada ali que eu já não soubesse, intuísse, ou tivesse sentido na carne.
Não será surpresa para uma novaiorquina constatar que 63% das mulheres que usam regularmente o metrô de Manhattan já sofreram alguma forma de abuso. E olha que isso é lá no hemisfério Norte. Basta estar viva para conhecer a realidade.
Qual a mulher no mundo que se sente confortável, mesmo vestindo hábito de monja, para andar na periferia de qualquer cidade de madrugada?
Na Arábia Saudita, onde não há periguetes atirando os peitos no colo de ninguém, a opinião pública consegue encontrar respaldo na mesma ladainha de “jogo de sedução” para explicar índices altos de estupro.
Sinta só: uma pesquisa realizada na capital, Riad, atestou que 86,5% da população relaciona o uso excessivo de rímel a casos de violência contra mulheres. Vai ver elas andam nas ruas provocando os rapazes a piscadelas.
Tudo a ver com a moda pornô do “funk do rímel”, “rímel ostentação” ou a onda do “rímel da cachorra”. Só mesmo apedrejando essas sem-vergonhas até a morte, yes?
Se deixar, daqui a pouco começam a vender camelo e gênio da lâmpada com propaganda que objetifique o olho e a pestana. Elizabeth Arden que nos acuda!
Exagero, meu leitor de cílios fartos, para enfatizar como estivemos atirando no alvo errado a semana toda. Tudo bem ficar “indignado” com o resultado da pesquisa, eu até entendo seu desgosto.
Mas, para mim o que pegou mesmo foi a naturalidade com que sociólogos e analistas engoliram o uso da palavra “merecem” do título do estudo.
Poderíamos ter caminhado para outras paragens usando os mesmíssimos dados. Só que o “merece” acabou servindo quase como sentença, atestado emitido pelo punho da opinião pública para crucificar oficialmente a mulher.
Dá a impressão de que o Ipea resolveu fornecer um instrumento para sancionar a violência.
É verdadeira a condição de mulher casada que não suporta peri¬guete solteira rondando o seu terreiro. E ninguém discute os valores de uma sociedade em que o sujeito trata a mulher de mucama e piranha, para servi-lo esteja ela ou não disposta.
Afinal, parece que abrir as pernas de vez em quando em troca de soldo mensal ainda é bom negócio. Basta olhar ao redor.
É fato que a solteira segue ocupando ranking inferior em relação à casada na escala de valores. Ou não? O “merece” da pesquisa do Ipea se justifica também quando ela sai na rua para protestar sua condição carregando o cartaz “Eu não mereço ser estuprada”.
Quem “não merece” trata de abandonar o papel de vítima e assume seu lugar em pé de igualdade. De objeto, passa a ser sujeito e dono do seu nariz e do seu desejo.
Não usa da sedução para garantir sustento. E sai do papel de “senhorita” virginal ou “senhora” respeitável, dependendo do status que consta nos seus documentos.
Temos uma das leis para proteger contra violência mais avançadas do mundo, a Maria da Penha. Mas de que serve, se insistimos em vestir a carapuça de Geni?