O fascínio de Witzel pela violência de Estado é proporcional ao seu ardor futebolístico
O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, foi à loucura com a virada de 2×1 do Flamengo no Riverplate, que garantiu ao time carioca o título de campeão da Copa Libertadores da América 2019.
Não satisfeito com os urros de torcedor, Witzel adentrou o gramado e se ajoelhou diante do goleador Gabigol. Indiferente, o herói da partida retribuiu com um frívolo aperto de mão e seguiu reto, sem se sensibilizar com a devoção fervorosa da autoridade.
O Flamengo é o time do coração de milhares de cariocas que vivem em comunidades carentes, localidades que têm sofrido na pele a política de mirar na cabecinha do atual governador.
Mortes colaterais se multiplicam pela cidade, com crianças e trabalhadores atingidos por balas perdidas em meio ao fogo cruzado, ou por ações precipitadas de uma polícia treinada para matar.
O fascínio de Witzel pela violência de Estado é proporcional ao seu ardor futebolístico. Mas muitos dos jogadores que fizeram sua alegria em campo moraram, ou têm parentes que ainda moram nas quebradas, becos e vielas onde o governador promove a limpa.
No dia seguinte ao jogo, o desfile dos campeões em carro aberto correu de forma pacífica, até o fatídico encerramento, quando o cortejo se viu obrigado a entrar numa via estreita, nas cercanias do monumento a Zumbi dos Palmares, transformando a comemoração em batalha campal.
Você pode responsabilizar a paixão pelo esporte, o excesso de álcool e o improviso do cerimonial pelas cenas que se seguiram, com bombas de efeito moral, corre-corre, desmaios, pedras arremessadas contra a guarda e policiais mirando os fuzis na direção da massa, mas isso não atenua a sensação de descontrole, pânico e tristeza.
O destempero dos agentes de segurança era tamanho que um carro da polícia em ré desesperada atropelou um companheiro de tropa. E em meio ao salve-se quem puder que pontuou o fim da festividade, como não pensar no que teria ocorrido caso o projeto de excludente de ilicitude estivesse valendo? A rajada de metralhadora contra a multidão de flamenguistas seria aceitável?
O desprezo de Gabigol por Witzel é proporcional ao desdém de Witzel para com os milhões de Gabigols anônimos que lotaram as ruas no domingo. A genuflexão do governador diante do ídolo e a mira da metranca na direção dos herdeiros de Zumbi evidenciam a sinuca de bico da atual política de segurança pública do estado.
Em zonas altamente povoadas, como a comunidade da Maré e a do Alemão, é impossível pôr em prática o plano de eliminação cirúrgica dos maus elementos, defendido pelo governador. O resultado é o recorde histórico de 1.546 mortes em confrontos com a polícia neste ano.
Existe um projeto de reestruturação do país baseado na truculência e no genocídio. Triunfa a ideia de que a defesa de direitos humanos é uma fraquejada dos ideólogos de esquerda, que acabou por promover o caos social e o avanço do crime.
O partido três oitão do presidente é o símbolo máximo dessa nova ideologia. Idolatra-se Gabigol, ao mesmo tempo em que se passa o cerol nos que não tiveram o mesmo talento, ou sorte, do jogador.
Weintraub promete enfrentar a crise no ensino acadêmico queimando as plantações de maconha que alega existirem nas universidades públicas. E planeja dar um fim aos laboratórios de química que, segundo ele, processam anfetaminas para regar a mente corrompida dos estudantes.
Nas artes, pretende-se eliminar o mimimi identitário por meio da exaltação da cultura branca, judaico-cristã. Nega-se o racismo e, na família, o problema se reduz a ignorar aqueles que não gozam com o abençoado papai e mamãe.
A liberdade de expressão tem servido de álibi para o exercício da ofensa e do preconceito, e as redes insociáveis, sem uma regulação eficiente, têm ajudado a cultivar a mentalidade agressiva e virulenta, abraçada por parte do eleitorado nas mais diferentes classes sociais.
A força bruta varrerá Sodoma do mapa e o Brasil cumprirá o ideal da bandeira, transformando-se numa nação ordeira e disciplinada.
Se o PIB der sinal de vida e o desemprego, alguma trégua, grandes são as chances de ver essa visão de mundo perpetuada. Defensor do estado mínimo, o ultraliberal Paulo Guedes operaria bem num superestado de exceção regido pelo AI-5. O ministro sonha com o Chile debaixo do chicote de Pinochet.
Enquanto seu lobo não vai, fica a admiração pela reação espontânea e simbólica de Gabigol à reverência de Nero.