Uma operação articulada que constitui verdadeira afronta às instituições, à legislação vigente, à democracia e à memória dos filhos, netos e demais familiares dos mortos e desaparecidos na ditadura. Um atentado que reproduz na sociedade o impacto semelhante ao de um golpe de Estado, porque muda o transcurso da História, apresentada em versão adulterada pelos negacionistas
O mesmo país desmemoriado que anistiou seus torturadores, deixando-os livres de responder na Justiça por seus crimes, garantindo-lhes um futuro risonho e tranquilo junto a seus familiares, inicia um espantoso processo de revisão histórica, que consiste em censurar e alterar trechos de documentos oficiais da CNV arquivados. Nomes de pessoas são ocultados e parágrafos inteiros suprimidos, numa operação que se assenta sobre a negação da prática da tortura e a mistificação da história recente.
Numa decisão sem precedentes, a Justiça Federal determinou ao Arquivo Nacional, órgão do Estado, que partes do relatório final da Comissão Nacional da Verdade fossem cobertas com tarjas pretas, ocultando os nomes dos “santos” dos choques elétricos e do pau de arara denunciados. O processo correu sigiloso. Encarregada de defender a integridade do relatório, a AGU omitiu-se, e o Arquivo Nacional cumpriu rapidamente a decisão, que já transitou em julgado.
Uma operação articulada que constitui verdadeira afronta às instituições, à legislação vigente, à democracia e à memória dos filhos, netos e demais familiares dos mortos e desaparecidos na ditadura. Um atentado que reproduz na sociedade o impacto semelhante ao de um golpe de Estado, porque muda o transcurso da História, apresentada em versão adulterada pelos negacionistas.
Processos de revisionismo histórico ocorreram em outros países e em outros tempos, geralmente em países que passaram por guerras ou ditaduras. E não apenas na Europa e no Leste Europeu sob Stalin, mas aqui mesmo em nossa América de tantas ditaduras patrocinadas por intervenções americanas no Cone Sul.
São dois casos de revisão histórica denunciados pela imprensa, em reportagens bem documentadas das jornalistas Fernanda Mena, da Folha, e Juliana dal Piva, colunista do UOL. No primeiro, o juiz Hélio Campos, da 6ª Vara Federal de Pernambuco, determinou que as menções ao ex-coronel da Polícia Militar Olinto de Sousa Ferraz fossem retiradas do relatório. Rigoroso, o magistrado orientou para a “cobertura do nome e de qualquer menção à tortura com sua participação direta ou indireta, por ação ou omissão, para preservar a imagem honrada do militar e de sua família”.
Honra esta que o juiz não reivindica para si. A ação foi movida por três filhos do militar, que dirigiu a Casa de Detenção do Recife quando o preso Amaro Luiz de Carvalho, militante do PCR, foi morto no cárcere, em agosto de 1971. A polícia divulgou que o preso havia sido envenenado por seus próprios companheiros de cela. Versão contestada por perícia posterior. O atestado de óbito do militante assassinado registra que sua morte se deu “por hemorragia pulmonar decorrente de traumatismo de tórax por instrumento cortante.”
O juiz usou o termo “anonimização” de partes do relatório para censurar o documento da CNV, depositado em arquivo público protegido por lei. Sua insolente parcialidade não apenas afronta a legislação como abre um precedente perigoso para o acesso a informações e conhecimento histórico do país. O judiciário se arroga um poder que não tem, o de conspurcar a memória e a verdade sobre os crimes da ditadura. Ao mesmo tempo, avaliza a disseminação da censura sobre documentos oficiais custodiados nos arquivos públicos.
Para Nadine Borges, advogada da Comissão de Direitos Humanos da OAB, que integrou as comissões Nacional e Estadual da Verdade, a interferência do judiciário para reescrever o passado é uma aberração jurídica e uma agressão à história. Para o sociólogo Edival Nunes, o Cajá, ele mesmo preso na casa de detenção e horror, ex-integrante da Comissão da Verdade, a situação é muito grave por alterar acontecimentos que integram a história dos 21 anos de ditatura, cujos crimes continuam impunes até hoje.
Em meio a um silêncio suspeito, torna-se angustiante, segundo Nadine, que a história seja reescrita com o país em ruínas, sob ataques fascistas. Servidores do Arquivo Nacional denunciaram que seis páginas foram removidas do relatório para que o nome do coronel Olinto não fosse citado.
O segundo caso foi denunciado por funcionários da Comissão da Verdade do Paraná, envolvendo o ex-governador e ministro da ditadura Nei Braga. Um parágrafo inteiro do relatório foi suprimido. E um total de 15 anexos, inclusive recortes de jornais, foram enxertados no documento oficial depositado no AN por determinação do judiciário, algo totalmente inédito na história arquivística brasileira.
É hora de partir para uma grande mobilização da sociedade civil para garantir no futuro aos nossos netos e bisnetos que os livros de História adotados nas escolas contem a verdade histórica e respeitem a memória do país. E não a versão censurada em que o juiz federal Hélio Campos encobre a realidade para transformar o coronel Olinto num “honrado oficial” e a ditadura num conto de fadas.