Hoje minha amiga Priscila faria 45 anos

Ela era mais introvertida, mas eu a equilibrava

Hoje minha amiga Priscila faria 45 anos. Ainda sonho com ela quase toda semana. Estamos em uma festa, ela está feliz, saudável, cabelos imensos, animada com alguma viagem ou paixão.

Temos vinte e poucos anos. O lugar está lotado, a música, alta. Uma vida pela frente. Mas, em algum momento do sonho, nós nos olhamos e sabemos que ela vai adoecer, e então ficamos melancólicas, sem conseguir dizer muita coisa. Estamos nos despedindo, mas minha amiga sorri mais do que eu.

Em outro sonho recorrente a encontro no que passei a chamar de “locais transitórios”, uma espécie de metáfora meio psicanalítica meio espírita para aeroportos e saguões de hotéis. Se estou chegando, ela está indo, e vice-versa. Eu tento me aproximar, e Priscila parece ocupada, com mala de rodinhas, sempre bem-vestida no estilo empresária descolada, misturando terninhos com tênis.

Ela me dá tchau em corredores, vejo-a por portas de vidros transparentes. Em uma das vezes usava um cachecol azul-claro, de cashmere, e aquilo me deu uma sensação boa, de que ficaria tudo bem, seu peito estava cuidado, aquecido e vivo.

No primeiro ano da faculdade, Priscila deu uma festa de aniversário em sua casa e não me chamou. O sucesso do evento foi tanto que todas as melhores histórias, os possíveis casais e as piadas internas entre colegas foram criados a partir daquele aniversário –e eu tinha ficado de fora.

Obsessiva desde sempre, tomei como missão conquistar aquela garota magrinha, tímida e que ria de um jeito charmoso demais, como se cochichasse.

Íamos a pé da faculdade até o Espaço Unibanco, na rua Augusta, onde hoje funciona o Espaço Itaú de Cinema. Eu falava o trajeto todo, me empenhava em parecer engraçada e inteligente. Ela foi gostando de mim aos poucos, até que viramos melhoras amigas.

Um dia Priscila me disse: “Sei que escolho pessoas como você, desinibidas, meio doidas, piadistas, porque equilibra comigo”. Nesse dia, ela me sinalizou sobre muitas parcerias felizes que eu ainda faria no trabalho, nas amizades e no amor.

Nossos filmes preferidos eram os franceses, iranianos, queríamos parecer estudantes “cabeça”. Uma vez vimos um filme alemão chamado “Edukators” e ficamos alucinadas. Era o primeiro contato das duas com a música “Hallelujah”, do Leonard Cohen, e terminamos o filme aos prantos.

Antes de ir para casa, ficamos sentadas um tempo, digerindo a história daqueles jovens lindos, anarquistas, que acreditavam poder mudar o mundo. Queríamos ser como eles? O que a juventude tem de extraordinária e singular é exatamente o que ela tem de mais clichê.

A partir desse filme, decidimos que o Daniel Brühl era o homem mais lindo do mundo. Qualquer pessoa que minimamente se parecesse com ele, em algum bar ou danceteria (ainda se chamava “danceteria”), a gente já se olhava e falava ao mesmo tempo: “Tem um quê dele”. E com sorte, vez ou outra, uma de nós beijava o Daniel versão brasileira.

Quando começaram os primeiros estágios, angustiadas, com nossas crises de enjoos e coceiras nas pernas, a única coisa que eu e a Priscila sabíamos era que eu queria escrever em vez de trabalhar em empresas e que ela queria juntar um dinheiro e viajar o máximo que pudesse.

E assim foi. Eu me tornei escritora, ela conheceu e morou em vários países. Se casou com um escritor francês que prometeu recentemente me apresentar ao Édouard Louis. Quando Priscila ficou doente, comprei algumas passagens para vê-la, mas eu estava vivendo a pior fase das minhas crises de pânico e não conseguia nem ir até a esquina sem me medicar.

Desisti de última hora todas as vezes que ameacei ir até Paris. Nós nos falamos cinco dias antes de ela ser internada pela última vez e morrer. Eu disse que a amava muito e que ainda queria dizer tantas coisas. Ela respondeu que não precisava e que também gostava de mim. Ela era mais introvertida, mas eu a equilibrava. c

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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