O que fizeram com o meu fetiche do décimo andar?
Meu marido não sabe, mas acho que tive um caso de dois dias e meio com um vizinho.
Sua voz doce ao violão me fazia abrir as janelas e suspirar pela casa. Sonhei com meu corpo nu entregue em seu sofá e ele, sentado no chão, perguntando absolutamente tudo sobre meus pensamentos mais obscuros. E ficaríamos tão íntimos e tão amigos que a solidão nunca mais teria encaixe na agenda. Um músico, poeta, escritor, artista. Um parceiro que sempre perguntaria: “E depois?”. E, após minha resposta, ainda indagaria: “E depois disso?”. Um eterno namorado que me beijaria a boca por horas, anos, e dançaríamos pela sala. Um amante que sempre despertaria todas as minhas células com um leve tocar de dedos e jamais salpicaria meu vaso sanitário com respingos descarados de urina desgovernada.
Um dia, apesar de o músico ostentar um golfinho de madeira no pescoço, puxei papo no elevador. Abri a boca para falar: “Acho que hoje chove”, mas, porque não suporto as frases que todo mundo fala e a vida que todo mundo leva, deixei escapar: “Sabia que fantasio muito te ouvindo da janela?”. E os olhos do músico se encheram de lágrimas, e, mais tarde, embaixo da minha porta, ele deixou um papel A4 com a letra de uma canção que estava compondo havia “mais de um ano”. Achei tão amoroso. E achei também uma perda de tempo, porque, em nome do Senhor, quem fica um ano tentando terminar uma porra de uma música ruim e não desiste?
Contudo, justamente porque meu marido não é dado a muito romance (e eu pensava que aí estava o problema), considerei por bem continuar o flerte. Um cara que, ao ser paquerado no elevador”¦ chora! Muito melhor do que um cara que segura firme meu braço e fala alguma grosseria tipo: “Ah é? Me conta mais então”. Hein?! Sei lá.
Trocamos números e entramos numa obsessão diária. Era “bom dia, minha musa”. Era “boa tarde, ser humano que venero”. Era “boa noite, talvez eu morra sem você”. E ele seguia chorando. Na piscina, na academia, no estacionamento. A vida o deixava perplexo, obliterado, chatíssimo. Durante os dois dias e meio que durou nosso arrebatamento, o músico me contou que às vezes não comia, não dormia, e estava havia muito tempo sem trabalhar “em respeito a sua alma”. Mas a arte o salvava! E me mandou a foto de uma pintura horrenda. Um buraco negro psicodélico que mais parecia um ânus arregaçado após suruba com aquarela.
Começou a me dar uma vontade tremenda de arrumar um emprego para aquele desgraçado. E de dar uns bons tapas em sua face poética, artística e sensível. Porra, mano, o que fizeram com o meu fetiche do décimo andar? Cheguei a pensar: que desgosto, um homem feminino! Mas eu sou uma mulher, e não um bebê narcísico masturbando minhas carências até jorrar vaidade disfarçada de humanidade nos outros. Não chamemos de feminino o homem bobo!
Tentei esquentar as coisas com uma foto minha de calcinha branca. Porém isso o remeteu ao Ano-Novo, que o remeteu à palavra “esperança”, e aturei umas cinco horas de elucubrações rasas sobre o vazio. Naquela noite, voltei a transar com o meu marido. Graças ao bom Deus, casei com um cara que bebe cerveja toda quinta e chama de “quinta etílica”, que pede hambúrguer com fritas toda sexta e chama de “sexta sem lei” e que, obrigada cosmos, me olha com desdém quando eu reclamo que só queria um homem sensível, poeta, romântico, artista.