Incompatibilidade de gênios é motivo para o divórcio?

O que fazer quando existe amor e os dois estão frustrados e insatisfeitos?

Fiz mais de duas décadas de análise e de terapias freudiana, junguiana, reichiana, lacaniana, cognitivo-comportamental e outras que nem sei nomear. Outro dia me perguntaram se algum insight terapêutico mudou radicalmente o rumo da minha vida. Foi fácil responder.

Há alguns anos, estava querendo me divorciar do meu ex-marido, mas sem coragem, pois não encontrava um motivo concreto para a separação. Eu me sentia infeliz, apesar de o meu ex ser um companheiro apaixonado, fiel, inteligente, sério e sincero. Até hoje, anos após a separação, ele é uma das raras pessoas em quem confio plenamente.

Logo no nosso primeiro encontro eu perguntei —brincando, é lógico— se ele sofria de incontinência verbal e verborragia, se conseguia colocar ponto, vírgula e interrogação nas suas frases. Ele fala bastante; eu sou calada, quieta e tenho que fazer um enorme esforço para falar. Ele gosta de sair, viajar e passear; eu, de ficar quieta em casa, lendo, estudando e escrevendo. Ele fica com a televisão ligada o tempo todo e fala horas no celular; eu não ligo a televisão e só uso o celular para questões de trabalho. Ele é sociável e adora encontrar os amigos; eu, como ele sempre criticou, sou “ermitã e bicho do mato”.

Ele me amava, eu o amava, mas o diagnóstico era simples: incompatibilidade de gênios ou de personalidades. Eu não conseguia ser a minha melhor versão com ele, e não permitia que ele fosse a sua melhor versão comigo. Ao contrário, apesar do amor, éramos a nossa pior versão um com o outro. Quantas vezes ele me disse que fazia um enorme sacrifício para me agradar e não conseguia?

Mas o que fazer quando existe amor e os dois estão frustrados e insatisfeitos? Tentamos nos separar uma vez, mas voltamos alguns meses depois. Fomos buscando nos acertar até que uma viagem que deveria ter sido a nossa segunda lua de mel foi um verdadeiro inferno. Ele querendo ficar o tempo todo com casais de amigos, eu querendo ficar só com ele. Assim que o avião pousou no Rio de Janeiro decidi me separar.

Fui ao meu analista com uma folha onde escrevi um balanço do meu casamento. De um lado, as coisas boas: amor, companheirismo, fidelidade, confiança, amizade, admiração e respeito. De outro, coisas ruins: brigas, implicâncias, chatices, irritações, discussões por bobagens, falta de escuta, de diálogo, de compreensão e de intimidade. Antes de eu ler a minha listinha, o psicanalista pegou a folha de papel da minha mão, rasgou em pedacinhos e disse simplesmente: “Acabou!”.

“Será que acabou mesmo?”, ainda tentei dizer apontando as coisas boas. Ele me interrompeu: “Acabou!”. Como ele é lacaniano, a sessão também acabou no momento em que ele rasgou a minha listinha.

Conto esse caso para refletir sobre as razões de casamentos que pareciam perfeitos terem terminado na pandemia. Quando escuto casais reclamando de relações doentias, tóxicas e abusivas, de traições, mentiras, deslealdades, violências físicas, psicológicas e verbais, percebo que tive muita sorte por ter tido maridos e namorados que me ensinaram a amar e ser amada. Nenhuma das razões que os casais usaram para justificar o fim do casamento aconteceu comigo. Mas, em função das nossas incompatibilidades e brigas constantes, meu ex não fazia bem para mim e eu também não fazia bem a ele, apesar de ele nunca ter admitido isso.

Hoje meu ex está muito mais feliz com uma mulher que combina com ele e que deve gostar do seu jeito falante e sociável. Eu estou mais feliz com um amor que sabe respeitar o meu jeitinho “bicho do mato” e minha necessidade de silêncio, quietude e solidão.

Só agora, na maturidade, descobri um amor tranquilo e gostoso, que sabe me fazer rir e adora rir das minhas palhaçadas, que me ama exatamente do jeito que eu sou e que não tenta me mudar. Confesso que ele também reclama que trabalho demais e que sou “pouco sociável”, mas, pelo menos até hoje, isso não tem sido um obstáculo para a nossa felicidade. Aprendi a cantar, como Tom Jobim e Vinicius de Moraes, “bom é mesmo amar em paz. Brigas nunca mais”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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