Injeção na testa

‘Sexo’ é dessas palavras que basta ler para que alguns neurônios espirrem dopamina

“Guapimirim sem corrupção!”, leio na camiseta da Renata assim que ela me libera no Zoom. Estranho, pois minha colega está sempre elegante: blusas e macacões coloridos, brincos, colares e penteados mil.

Trabalhamos juntos faz uns dois anos e embora nossos encontros presenciais possam ser contados nos dedos —ela no Rio, eu em São Paulo e a pandemia no meio—, temos intimidade o suficiente para que a cumprimente não com um protocolar “oi”, mas com “Guapimirim sem corrupção, Renatinha? Onde é Guapimirim? Quem a está corrompendo? Quem será o herói incorruptível a salvá-la?”.

Renatinha termina de mastigar umas pipocas, responde “Sei lá, a camiseta era grátis” e eu entendo tudo.

“Sexo” é dessas palavras que basta ler para que alguns neurônios espirrem dopamina. “Pudim” tem efeito semelhante, embora seja outra a turma de células, creio eu, a babar neurotransmissores. Mas nem “sexo”, nem “pudim”, nem “Bahia”, nem “Pelé” faz com que minha massa encefálica —e, aparentemente, a da Renatinha também— vibre como diante de “grátis”

Deve ser produto da seleção natural, epifenômeno resultante do nosso passado caçador/coletor. Imagina você e seu bando caminhando pela floresta, famintos, suados sob o sol a pino, então dão de cara com um cajueiro carregado. Suponho que seja esse o tipo de encontro responsável por moldar, ao longo de milhares de anos, as emoções em torno de tudo o que é gratuito.

Não à toa um dos nossos maiores mitos fundadores trata do assunto. O que é o “Gênesis” senão a triste história da passagem do paraíso 0800 pra dura realidade do pré e pós-pago?

O primeiro capítulo da Bíblia poderia ser resumido a “Era tudo na faixa, vacilaram, agora vão ter que trabalhar”.

Anos atrás fui participar de uma CCXP. Ao chegar no camarim meu coração bateu mais forte. Tinha ali um freezer cheio de refrigerantes grátis. Peguei uma Coca e sentei numa poltrona, mas minha alegria pueril (ou primeva?) terminou assim que me dei conta da matemática deficitária da minha satisfação: uma lata de Coca-zero custa R$ 2,77 e o Uber pra Comic Com havia saído uns R$ 80. Não importa. O apelo de tudo o que é “de grátis” me faria pagar R$ 1.000 pra pegar um chaveiro de R$ 10.

Trabalho na Globo. Antes da recente pindaíba nacional, todo fim de ano a empresa dava aos funcionários uma mala térmica com um peru congelado, um salame, um tender e uma torta Miss Daisy.

Não era raro você encontrar na fila do brinde um Galvão Bueno, uma Glória Perez, um Walcyr Carrasco gente cujo salário de um mês compraria perus de Natal suficientes para dar duas voltas na Terra —caso voltas na Terra fossem medidas em perus de Natal. Gula? Mesquinharia? Nada. Era o chamado da natureza, a partitura cromossômica composta nas savanas a nos fazer executar aquela mesma coreografia, ano após ano, no Subsolo 1 do Módulo Laranja, Estrada dos Bandeirantes, 6.700, Curicica, RJ – portaria 2.

Imagino se o Galvão Bueno, a Glória Perez ou o Walcyr Carrasco também sentem, como eu, uma leve melancolia lá por 15 de dezembro, ao lembrar dos farnéis de outrora. A torta era meio ruim, verdade, mas o retrogosto da gratuidade compensava a textura rançosa do chantilly congelado.

O mundo só piora, não tem jeito. O que consola é lembrar que em Guapimirim ainda dão camisetas grátis —e, claro, lutam contra a corrupção. Agora chega de papo-furado, Renatinha, vamos trabalhar que a vida não tá ganha e embora não nos deem mais malas térmicas ainda pagam o nosso salário —sabe-se lá até quando.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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