Como eu vivo no passado, gasto pouco, embora meu papo seja meio sobre o chato para quem der o azar de me pegar discursando sobre os egrégios “bons tempos”, “aqueles dias que não voltam mais”, “na minha época era bem melhor” e outros lugares-comuns sofridos por qualquer pessoa que já deu uma bobeada e se sentou ao lado de um passadista.
“Os passadistas já eram”, pensam ou dizem elas, mal se dando conta do razoável jogo de palavras em que se embrenharam descuidados, jovens e inexperientes que são.
Há alguns anos, sempre que um viajante ousado ia passar uns tempos no Brasil e, por delicadeza, me perguntava se queria alguma coisa de lá, deixei de lado o que até há alguns anos era minha invariável resposta, “Quero, sim. Pastel de queijo e uma garrafa de xarope de groselha Dubar.”
Passei a fazer encomenda a sério. Peço que passe num sebo ou lugar esotérico semelhante e me consiga duas listas telefônicas do Rio de Janeiro – a de nomes e a de endereços -, anos 50, se possível. As páginas amarelas? Nem pensar, pois sonho baixo, sonho rasteiro, sonho com o que deveria ser plausível.
Só um probleminha: plausível não é com a gente, não, senhor. Pré-sal, sim. Plausível, não.
O fato nu e cru, como é hábito de nossos fatos se vestirem, é que não só não temos memória, como reza o lendário popular, como nada ligamos para aquilo que se passa agorinha mesmo na nossa frente, já, nesse instante, e que logo, logo se transformará em memória quando então… Pois é, somos circulares.
Como circular era aquele bonde por número 21. Ó senhor! O 21, Circular! Que fazia o seguinte trajeto: Praia de Botafogo – S. Clemente – Humaitá – Jardim Botânico – Bartolomeu Mitre – Dias Ferreira – Ataulfo de Paiva – Visc. Pirajá – G. Carneiro – Francisco Sá – N. Sa. Copacabana – Siqueira Campos – Túnel Velho – Dr. Sampaio Correia – Real Grandeza – Gen. Polidoro – R. da Passagem – Praia de Botafogo.
Catei lá no meu Guia Rex. Só eu e mais 198 passadistas nos lembramos dessas coisas, guardamos nossos Guias Rex. Guia Rex parece que ainda se encontra e muita gente decente guardou.
Não guardamos bonde. Um único bonde. Para as crianças verem como era, com seus papais e mamães mostrando, como era antigão, desajeitado, feioso. Fotos de bonde, uma ou outra, nesses sítios que nós, os 198 que restaram, insistimos em regar, cuidar e fazer florescer.
(Vontade de escrever um mau verso sobre como se rega, cuida e se faz florescer um passado.)
Eu custo um pouco, ou muito para muitos, mas chego lá. Feito o 21, Circular.
Eu queria as listas telefônicas só para ler com mais atenção do que li James Joyce e ir recompondo a cidade pelo nome e número de seus edifícios, padarias, bares, cinemas e, por que não? até mesmo o nome dos moradores que nunca conheci do edifício Miramar, ali na Avenida Copacabana.
Ter o enorme prazer de a todos ser apresentado e me apresentar, eles que, na certa, já deixaram todas as listas há muito.
Seria um instantâneo para eu cuidar com carinho. A foto passaria a ser revelada pressurosa no escuro laboratório da mente.
Estão vendo no que dá pegar o 21, Circular? Os passageiros, ilustres, passam a pegar imagens metidas a besta, expulsas do Parnaso por falta da devida habilitação.
Sei que, hoje, lista telefônica no Rio (ou será no Brasil todo?) é sinônimo de escândalo. O único escândalo, para mim, é não ter sobrado um único exemplar em uma única biblioteca, sebo e mesmo estante de livros na casa de saudosistas.
Gente boa, amiga e desconhecida que, comigo, muito circulou no 21, Circular.
16 de outubro de 2009