Conhecido no Brasil pela publicação de alguns de seus livros (Cartas a um jovem contestador; Amor, pobreza e guerra; Deus não é grande; Últimas palavras e Hitch-22) que é o registro pormenorizado de suas caudalosas memórias, Christopher graduou-se no afamado Balliol College, uma das mais respeitáveis escolas superiores de Oxford, forja de ministros de Estado, políticos, escritores e jornalistas.
Uma de minhas leituras desse final de ano foi Hitch-22, a história de um dos intelectuais mais admirados e controversos de nosso tempo (Nova Fronteira, RJ, 2011), com tradução de Alexandre Martins, e já na capa encimando a foto do autor na meia idade, com o indefectível cigarro na boca, a transcrição da frase lapidar cunhada pelo romancista Ian McEwan: “Se Hitchens não existisse, ninguém seria capaz de inventá-lo”.
McEwan foi um dos melhores amigos de Hitch (seu apelido), que detestava ser chamado pelo diminutivo Chris, figurando numa lista que também tinha Kingsley e Martin Amis (pai e filho), James Fenton, Gore Vidal, John Updike e Noam Chomsky, entre tantos outros, assim como intelectuais e pensadores que lhe fizeram a cabeça balizando sua formação política e literária desde os primeiros anos do tradicional sistema inglês de educação: George Orwell, Eric Hobsbawn, J. G. Ballard, Ian Watt, R. H. Tawney, Arthur Koestler, Graham Greene, Vladimir Nabokov, Saul Bellow, Malcolm Lowry e Isaiah Berlin, para citar uns poucos.
Filiado ao Partido Trabalhista logo que a idade permitiu Hitch participou de quase todas as manifestações contra a guerra do Vietnã e, definindo-se como “social-democrata de esquerda” tornou-se crítico mordaz do então presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, que, no entanto, contava com o apoio do governo trabalhista inglês.
Por sua capacidade natural de liderança Hitch despontou entre colegas e professores de Oxford como legítimo enfant terrible, ajudado obviamente por apurado senso de observação: “Enquanto via acadêmicos e professores famosos tropeçando aqui e ali, também eu, em minha carreira de orador da associação estudantil de Oxford tive oportunidade de conhecer ministros religiosos e parlamentares ‘de perto’, jantar com eles antes e beber com eles depois, e mais uma vez ficar impressionado com quão ignorantes e às vezes absolutamente idiotas eram as pessoas que diziam comandar o país”.
O que não diria sobre a maioria dos atuais governantes e pais da pátria esse inconformado intelectual se estivesse vivo e viesse passar uns tempos no Brasil?
Adversário ferrenho do fascismo, Hitch acompanhou os estertores do regime do “envelhecido ditador Antonio Salazar, uma relíquia nojenta da época de Mussolini e Hitler”, que não só controlava Portugal “mas também tinha entre suas possessões os territórios de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau”. Lembrou que “Angola e Moçambique, quando vistos em um mapa, são como pilares ou portões protegendo as rotas oriental e ocidental para o Zimbábue (então Rodésia) e para a África do Sul”, concluindo com razão que “assim, parecia bastante óbvio que uma vitória sobre o fascismo português também prenunciaria o fim, em não muito tempo, do apartheid”.
Numa definição altamente politizada da ditadura que perdurou por vinte anos em nosso país, Christopher não titubeou em enquadrá-la como o “maior e em certos sentidos mais depravado dos regimes militares autoritários do Cone Sul das Américas”.
Citando a Argentina, que por longo período também padeceu sob o arbítrio de militares medíocres e sanguinários, o intelectual mencionou o caso do jornalista Jacobo Timerman, editor do jornal La Opinion, de Buenos Aires, sequestrado e torturado pelos esbirros da ditadura, elegendo-o como uma das vítimas emblemáticas da “maldade radical que tomou todo um subcontinente”.
Hitchens não se furtou em destacar em suas memórias a horrenda figura do general Jorge Rafael Videla, enfatizando que o mesmo foi finalmente condenado “porque vendeu os filhos das vítimas de estupro e tortura que eram mantidas em sua prisão particular”, advertindo: “Eu poderia colocar em itálico palavras alternadas da última frase sem torná-la mais perturbadora. E esse tipo subumano foi louvado como amigo pessoal e anfitrião agradável, mesmo após ter sido afastado do cargo que ele havia desonrado, por ninguém menos que Henry Kissinger”.
O jornalista investigativo viajou a Buenos Aires em dezembro de 1977, como enviado especial da revista The Nation a fim de entrevistar o ditador de plantão, descrevendo o encontro de forma irretocável: “Lá estava o assassino, torturador e explorador do estupro, como se ilustrando um seminário sobre a banalidade do mal. Magro até os ossos e de aparência medíocre, com um bigode farto, ele parecia a todo mundo um cretino interpretando uma escova de dentes”. Nem George Bernard Shaw, gênio do sarcasmo na literatura inglesa, teria sido capaz de inventar metáfora tão fulgurante. A parte mais grata da viagem, Hitch reconhece, foi flanar pela “extravagantemente adorável cidade de Buenos Aires” e conhecer seu ídolo Jorge Luis Borges.
Após esse prolongado introito, a propósito da repercussão na academia e meios de comunicação do reatamento de relações diplomáticas e comerciais entre Cuba e Estados Unidos, o que me chamou a atenção na leitura do livro de Christopher Hitchens foi a clareza da apreciação do que viu no país caribenho dominado por Fidel Castro, pouco depois da queda do ditador Fulgêncio Batista. Vale a pena reparti-la com o frequentador desse espaço.
Haviam se passado poucos meses da morte de Che Guevara na selva boliviana, quando o governo cubano anunciou que “qualquer jovem esquerdista que quisesse romper o embargo e conseguisse chegar à ilha seria um convidado em um campo especial para internacionalistas”. A motivação era também a probabilidade de entrosamento com revolucionários de todo o planeta, e ainda a oportunidade de “ver se a alegação de Cuba ser um modelo alternativo ao socialismo de Estado soviético tinha alguma durabilidade”.
Ao resgatar a memória do período Hitch admitiu a dificuldade de “lembrar hoje, quando a própria Havana é governada por uma oligarquia enrugada de gárgulas comunistas, mas nos anos 60 havia um contraste chocante entre os bonecos de cera do Kremlin e a jovem, informal, espontânea e mesmo um tanto sensual liderança de Havana”.
Enfim, mesmo com o discurso disciplinado pela solidariedade socialista internacional e o registro honesto dos lances da permanência em Cuba, embora com certa dose de histrionismo, Hitch foi tocado por indiscutível premonição: “Não vou fingir que não foi um tanto excitante estar na primeira fila e ver o jovem Fidel Castro se encaminhar ao microfone e começar a coçar sua barba do jeito como costumava fazer. Mas depois das duas primeiras horas e das primeiras ovações de pé eu senti que começara a entender os pontos principais. E duas horas depois estava prestes a sair e procurar uma cerveja gelada”.
Aliás, uma mercadoria que não faltava e, melhor, fornecida de graça para quem quisesse. O jovem trotskista ouviria de um manifestante que, exatamente, era a cerveja gratuita o principal fator de atração da maior parte das pessoas ali reunidas. A descrição reserva, porém, sua parte mais visionária: “Mas o que mais agitou minhas entranhas foi a impressionante disponibilidade de jovens prostitutas cercando a multidão. Uma das alegações da Revolução Cubana era ter abolido a prostituição, e embora eu nunca tivesse considerado isso possível (a dissolução do Estado é uma coisa, e a dissolução do pênis outra bem diferente), a cena das putas em Santa Clara era muitas vezes mais horrenda do que qualquer coisa que se podia imaginar numa sociedade burguesa”.
Ao final de 55 anos de domínio absolutista, com a redução de Cuba a uma aldeia africana e de seus cidadãos a meros zumbis dependentes do governo – o teto dos salários não passa de trinta dólares – as casas desmoronando e os carros consertados com arame e cola num verdadeiro prodígio dos mecânicos da ilha, quem vai a Cuba percebe que, talvez, a ocupação mais rentável de milhares de jovens e velhas mulheres é vender o corpo, especialmente para turistas sexuais europeus.
Foi o que restou da bazófia da “pátria ou muerte”. Aqui