Se vivo estivesse, o escritor Jamil Snege (1939-2003) emplacaria sexta-feira que vem, dia 10, setenta anos! Quem diria, o velho Turco, septuagenário, ele que nos deixou nos seus jovialíssimos sessenta mal-iniciados? Guru de toda uma geração, criador genial em vários sentidos, Snege corre o risco, contudo, de ser completamente esquecido. Seus livros não são reeditados, por incompreensíveis imbróglios familiares, e a memória curta destas e de outras plagas é, sabemos, de ordinário implacável.
Eu o conheci, ainda que já calvo – a sua maior característica física, além da barba eterna -no esplendor dos seus 26 anos. Inquieto, sarcástico, perturbador, coisa, aliás, que não deixou de ser nunca, mesmo nos últimos, e sofridos, dias. Não perdoava ninguém e escrevia assim de uma maneira tumultuária, intermitente, compulsiva.
Nenhum método, nenhuma pretensão com a literatura, nenhuma ambição. Talvez porque soubesse que tudo o que lhe brotava da velha Remington, na bagunça de sua pequena agência de publicidade da Mercês, já nascia clássico. E de uma arrepiante beleza.
Considero O Jardim, A Tempestade, o seu melhor livro. Contos curtos, de uma precisão cirúrgica. Um texto mais enxuto que o outro, raro sentido de conjunto. A última flor do Lácio vibra ali, puro cristal, lâmina afiada. E não só nesse título. Também nas memórias às quais se dedicou com entusiasmo – sem erro o nosso maior memorialista -, a linguagem é depurada em soda cáustica.
Odiava os escritores desleixados, aqueles que classificava, com sua verve ferina, como “formados em literatura num curso do Senai”. E citava exemplos, claro, aos borbotões, de literatos cá mesmo da aldeia. Ganhava, com isso, inimigos fidagais. Não aliviava a mãe, se necessário fosse, quando o assunto era escrever. Típica figura que perdia o amigo (e perdeu vários!) mas não perdia a piada.
Aprendi de um quase tudo com ele. E não só eu! Cristóvão Tezza ensaiou, sob sua guarda e guruato, os bravos primeiros vôos que vieram dar no escritor maduro, e reconhecido nacionalmente, que é hoje. Com justiça, diga-se de passagem. Tezza integra, sem favor, o primeiro time da literatura que se faz hoje no Brasil.
Jamil Snege faz muita falta.
A cada desacerto, a cada hipocrisia, a cada falso “talento” que insiste firmar-se nas letras nacionais, daqui ou d’alhures, a figura do velho Turco, como um instigante espectro, alto se alevanta e parece afugentar rapinas e rapinagens.
Quarenta anos nos uniu a vida andeja! E, como já disse um dia, a saudade de Jamil Snege há de me acompanhar para sempre, feito uma luz, violeta talvez, a fazer brotar do canto do olho, me permitam, ainda outra vez esta lágrima…