Júlia

– Bom dia, Helena!

A presença dela não deixou de acompanhá-lo e de zelar por Henrique. Sentia-se direcionado, a todo instante e com maior intensidade, cada vez que reclamava seu socorro. Sabia que, algum dia, a reencontraria, em sonhos ou visões. Mas, até lá, a lembrança de sua voz, de suas atitudes, seu jeito de caminhar e lidar com as situações, suas ideias, enfim, eram uma espécie de guia e um talismã nos desafios cotidianos. A começar por sair da cama, encarar a lida e ir à luta. A simples descoberta dos motivos a perseguir era animada por seu sorriso. Se contasse para qualquer pessoa, o chamariam de louco. Ele mesmo, por inúmeras vezes, questionou a saúde de sua racionalidade, mas bastava a lembrança de um olhar para que aceitasse sua condição e se rendesse àquela conexão maluca e estimulante. O sorriso dela lhe transmitia a força necessária para seguir adiante, quase como regra de um contrato estabelecido e rigorosamente respeitado. Não apenas guiava nessas poucas realizações mundanas, mas o encorajava a desenvolver e a encarar sua espiritualidade.

Os desencontros da vida residiam nesse descompasso. Textos lidos, vídeos assistidos, todo conteúdo absorvido sobre essa conexão infinita lhe diziam que o caminho evolutivo ainda demandava muitos passos, em muitas estradas, ao lado de outras pessoas, até a união em definitivo daquelas chamas geminadas. O amor que sentia por Helena ainda transbordava de seu peito e precisava ser canalizado para vibrações superiores, focadas não mais em perdas ou tristezas, mas para o auto amor, para a valorização da vida e até um bem querer pela humanidade. Ao que tudo indicava, essa nova visão das coisas agia como um amenizador do luto e das culpas que testavam de tempos em tempos a rigidez dos seus propósitos de enriquecimento espiritual.

Dois sonhos recentes, muito nítidos, apontaram finalmente sua missão de vida no caminho que o encontro com Helena veio sinalizar: exercitar o poder de pronunciar as palavras certas para a mediação e mitigação de conflitos. Não no sentido profissional e técnico, mas apenas pela mágica no uso de vocábulos, frases e gestos espontâneos e verdadeiros. O amor incondicional lhe fora despertado no peito para que aprendesse a orientar aquela energia para um bem coletivo e, embora não soubesse ao certo ainda como cumpriria esse desígnio, as situações vividas nos sonhos e o sorriso que enxergava acordado, estando de olhos abertos ou fechados, tranquilizavam-no: quando as situações se apresentassem, ele saberia o que dizer e como proceder.

Em um devaneio, se via cercado de pessoas desconhecidas, estranhas à sua realidade, mas que devoravam suas orientações e seu conselhos com a sede que o mato seco bebe e se nutre das primeiras gotas de chuva depois de atravessar longos períodos de estiagem; Encantadas pelas soluções claras e pela facilidade com que ele esclarecia as situações colocadas. Viria a estabelecer uma relação sólida de confiança com essas pessoas conhecidas ou desconhecidas que, imediatamente veriam nele uma fonte inesgotável de elucidações também. O dom brotaria espontaneamente, mas vinha rubricado pelas inúmeras experiências, acúmulos de vivências, conhecimentos e informações adquiridos ao longo da vida inteira. Tudo se combinava, fazia sentido e se completava. No fundo, no fundo, ele só precisaria acreditar em si mesmo e ser o mais sincero possível nessa relação com o espelho, sem maquiar com arrogâncias e imposições uma segurança tão naturalmente própria e magnificamente bela.

Montado esse quebra-cabeças, Henrique compreendeu, sem jamais aceitar, a necessidade da ausência dela para sua escalada. Desenvolveu uma capacidade de se importar com situações e com as gentes que eram inimagináveis no seu dia a dia, perseguindo histórias e feitos a serem narrados. Encontrou nessa clareza um roteiro de fato épico a ser escrito e compartilhado. Não era um aventureiro, apenas alguém amadurecido. É estranho como o amor, tão corriqueiramente banalizado, menosprezado e incompreendido nos diferentes apelos, apropriações e derivações que versam sobre seu sentido, pode ser vivenciado e construído das mais diferentes e inusitadas formas! Inclusive, medos, inseguranças e traumas que causam feridas vivas e profundas podem ser, a partir do lenitivo de um novo olhar, transmutados em serenidade!

A consciência e abertura que decidiu fincar na conexão com sua contraparte espiritual fez dele um vetor de prosperidade partilhada. Essa magia era percebida e tocava os outros nas mais singelas ocasiões, sem maiores ou menores esforços. Era fruto de um diálogo constante dele com o espelho, reconhecendo-se íntegro e integrado às forças do universo e vendo-se, pela primeira vez de fato, como a centelha de um amor maior que todos somos. Ao descobrir-se humano, viu seu potencial divino, que extinguia conflitos e compreensões ao alcance do seu contato, de gestos e de palavras bem ditas.

Júlia entrou na vida de Henrique justamente no momento em que ele se percebia mais aberto à compreensão desse amor e que, desperto, maturava entre saudades e novos anseios a redefinição dos propósitos desta vida. Fechou os olhos e se despediu daquele dia da maneira como atualizou as preces e rituais de conexão com sua essência antes de adormecer: – Boa noite, Helena!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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