La Pietá

Esta semana, quando saí de casa para caminhar no Parque Bariguí, a rua onde moro – no coração do Jardim Champagnat, em Curitiba – estava congestionada. Um corpo está estendido no chão. Ao lado dele, danificada, uma pequena moto, dessas humildes, de trabalho, para carregar encomendas. E, mais adiante, parado no meio-fio, o veículo que o atropelou, um carro importado. O motoqueiro está vivo, apesar do rosto inchado e de um pouco de sangue que escorre pelo nariz. Uma moça de uns 25 anos sentou-se no chão e colocou a cabeça dele no colo. A cena me emociona, lembra vagamente La Pietà de Michelangelo, a obra-prima da Renascença que representa o Cristo nos braços da Virgem.

Paro meu automóvel e, por uma fração de segundos, meus olhos cruzam com os do rapaz. Não sou bom intérprete das emoções que ocorrem nessas horas, sempre botamos nossas próprias coisas nos olhos dos outros, mas vejo que há medo, insegurança, no rosto daquele menino. Numa palavra, solidão. Para usar outra, abandono. Estirado numa avenida, atropelado por alguém importante o suficiente para ter um carro de luxo, ele está assustado – parece mais sozinho do que nunca esteve. A garota anônima, cheia de piedade, em estado de graça, passa a mão por seus cabelos. Ela não fala nada, está ali, generosa, quieta, com aquele motoqueiro ferido nos braços, à espera da ambulância.

Talvez com seu gesto tente corrigir uma sensação que dá em todo mundo. A de que é bem nesses momentos, os grandes momentos, que estamos sós, terrivelmente sós, apesar das pessoas e carros que passam aos montões pela frente da gente.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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