Hospedado em minha casa em Curitiba, no final dos anos 80 (nesta época ele morava em São Paulo, na casa da Fortuna), Leminski ficou amigo do chinês de uma pastelaria embaixo do prédio, com quem conversava de todas as maneiras ao sair para comprar pão.
Tentava falar com o chinês, que viera de Cantão, em mandarim, e normalmente chegava atrasado, com o pacote de pão amassado debaixo do braço, desistindo de tomar café conosco, pois já ficara freguês de um engordurado bolinho de carne da pastelaria. Foi por esses tempos que discutimos muito sobre cultura hispano-americana, literatura e revolução — a propósito de uma tradução de Guillermo Cabrera Infante que eu estava fazendo para a Cia. das Letras, e que ele gostava de ler durante as tardes. Ele estava um pouco over, saía todas as noites e nem víamos quando voltava. Mesmo arriscando ouvir alguma desconversa aborrecida dele, disse-lhe que achava que ele precisava parar um pouco, talvez ir para a chácara de algum amigo, ficar longe da cidade, voltar a escrever, enfim, tentar frear aquela vertigem suicida.
Surprendentemente, ele não fez graça nem torceu o nariz fingindo não ter ouvido. Depois de um tempo em silêncio, disse, com uma calma aterradora, que se manteria conscientemente nesse mesmo rumo, com “a dignidade suprema de um navio perdendo a rota”, pois assim se sentia mais vivo, mais criativo, e que a lucidez da sobriedade agora tomaria o mundo opaco para ele.
Além dos traços mais evidentes de sua personalidade, como a transbordante criatividade e a generosidade (típica, aliás, dos grandes artistas), lembro-me de seu bom humor e de uma paradoxal fragilidade, revelados através de uma poderosa e romântica imaginação poética, que lembra a “vivência oblíqua pela imagem” de que falava Lezama Lima, e de uma atitude muito particular que ele assumia nos momentos mais adversos.
*Josely Vianna Baptista
Poeta e tradutora, fazia parte da equipe do jornal Nicolau.