© Américo Vermelho
Anos 60, Edifício Garcez, Boca Maldita. Paulo Leminski professor de História, Literatura e Redação do Curso Abreu Pré-vestibular, saindo de um treino na Academia Kodokan, convida alguns alunos, amigos meus, para ir até a casa dele. Estou ali por acaso. Não sou seu aluno, nem o conheço, mas também sou convidado.
São mais ou menos três horas de uma daquelas tardes tediosas que costumam se arrastar sobre o fim de nossa adolescência em Curitiba, cidade chata, provinciana, acanhada.
O apartamento fica na Doutor Muricy, no Edifício São Bernardo, a meia quadra da Biblioteca Pública. Uma caminhada, alguns degraus e estamos na sala de estar, sentados no chão em torno de um toca-disco portátil.
Paulo acende um incenso e propõe uma audição de ópera chinesa. Antes de dar o play, faz uma breve introdução sobre o autor e a obra, que logo se revela bem mais interessante do que a peça que passamos a ouvir. A fumaça do incenso já nos envolve em densa nuvem e estamos todos compenetrados, procurando entender aquele som absolutamente estranho, quando toca a campainha. Nenhum de nós ousa sair do lugar.
Alguém abre a porta e a sala é invadida por dois homens carregando um colchão. Acompanhado por um indecifrável arranjo de tambores e instrumentos exóticos, o baixo chinês emite um longo gemido gutural. Incrédulos, os carregadores atravessam a sala sem desviar os olhos da cena. Depositam o colchão num canto e, ainda pasmos, vão saindo de costas para a porta. Mais um gemido do chinês e a porta se fecha rapidamente. O som da ópera é abafado pelo coro das nossas gargalhadas.
Começou aí e assim a amizade que me ligou a Paulo Leminski – Wyatt Earp & Doc Hollyday – por mais de 25 anos. Tudo rolou com tal intensidade que ainda hoje as histórias e personagens desse tempo formam uma selva espessa em minha memória. Um dia, quem sabe, eu respiro fundo e começo a contar.
Por enquanto, contentem-se com esta cena do primeiro encontro, emblemática da estranheza com que a cidade sempre contemplou a personalidade perigosamente fascinante do maior agitador cultural de minha geração. Certa vez, ele disse: “Ninguém pode ser muito melhor do que sua própria tribo.” Afirmação que, com o tempo, ele mesmo encarregou-se de desmentir.