‘Libertas et justitia’

No curso de minha vida funcional na Secretaria do Tribunal de Justiça do Estado, combinei com alguns colegas escrever o Livro Negro do Poder Judiciário. Nele, reuniríamos alguns dos inúmeros episódios protagonizados pelas excelências de toga. Talvez um volume fosse insuficiente.

Contaríamos, por exemplo, o caso daquele eminente desembargador que, flagrado de cuecas, sapatos e meias com ligas, atrás das cortinas de seu gabinete de trabalho, justificou que fazia ali a sua “higiene pessoal”… Ou daquele outro, então com assento no Tribunal de Alçada, que, sendo reiteradamente rejeitado na composição da lista tríplice de acesso ao Tribunal de Justiça, ameaçou atirar-se do 10º andar do Palácio da Justiça. Constaria também o episódio daquele funcionário do egrégio que, tendo sido alçado ao cargo de desembargador por influência política, ao despedir-se dos antigos colegas de sala, pediu-lhes que, doravante, o chamassem de desembargador e excelência.

Haveria muito por contar, mas o livro ficou apenas no projeto, por motivos óbvios, ainda que as histórias continuem sendo repetidas oralmente entre os antigos servidores da Corte. Há uma, porém, que eu posso publicar porque já constou de uma seleção de escritos reunida em um modesto volume caseiro, que denominei “Disparos ao Entardecer”. Além do que, demonstra como funcionam as coisas nos bastidores dos poderosos, incluindo a imprensa, e é uma homenagem a uma das mais íntegras e competentes pessoas das quais tive a honra de ser colega de trabalho, o meu caro Mário Montanha Teixeira Filho.

Mário, então diretor de divulgação do Sindijus – Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Paraná, enviou um release aos órgão da imprensa curitibana dando conta da intenção daquela entidade de classe de protocolar na Secretaria do TJ, em nome de seus associados, pedido de pagamento de parcela salarial que lhes fora assegurada por decisão do Supremo Tribunal Federal.

No dia seguinte, um tenebroso sábado de muito frio e muita chuva, lá pelas 22 horas, Mário foi tirado da cama por um telefonema. Do outro lado da linha, fazendo eco aos raios e trovões que marcavam a noite, um apoplético desembargador, então presidente do egrégio Tribunal de Justiça – que sempre se destacara pela afabilidade, elegância de modos e esmerada educação, incluindo um leve sotaque francês – despejou sobre o jovem líder sindical um sortido volume de impropérios e ameaças. Perdera por completo a compostura e se mostrava incontrolável. Somente algum tempo depois, quando fez uma rápida pausa para retomar o fôlego, é que o estupefato Mário teve a oportunidade que indagar por que afinal se tornara merecedor daquele destrato todo. Soube, então, que se devia àquele até então inocente e rotineiro release.

– Mas, o senhor o leu? – atreveu-se a indagar o sindicalista.

– Não, mas o Francisco me contou! – foi a resposta.

“Francisco” queria dizer o diretor daquele que orgulhosamente se intitulava “o jornal da família paranaense”.

Seguiram-se momentos do mais autêntico non sense, nos quais um até então tido como atrevido e irresponsável dirigente sindical procurou acalmar uma tida até então como comedida e equilibrada autoridade pública, chefe de um Poder que se caracteriza (ou deveria caracterizar-se) pela serenidade, isenção e bom senso, fazendo-a ver que não se tratava de nada daquilo que lhe fora passado, que a nota endereçada à imprensa era inofensiva, rotineira e tinha apenas o propósito de informar.

O eminente mandatário ainda teve forças para uma derradeira investida:

– Mas você poderia, ao menos, ter esperado passar as eleições!… – como se o fato tivesse alguma ligação com o pleito político que se avizinhava e lhe coubesse a missão de aplainar o caminho do então governador do Estado rumo à pleiteada reeleição…

Algum tempo depois, já recomposto, embora sem esboçar a intenção de nenhum pedido de desculpas pelo gratuito, equivocado e intempestivo procedimento, o insigne magistrado despediu-se do estupefato Mário com uma máxima final:

– É, eu só queria mesmo desabafar!…

Célio Heitor Guimarães

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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