Depois de tudo o que vi e li, estupros, execuções covardes, corpos infantis sendo resgatados dos escombros, escolas e hospitais bombardeados, cheguei a escrever que perdi minha fé no ser humano. Ao longo dos dias, ajudado por algumas leituras, concluí que minha fé no ser humano era apenas uma ilusão, o tipo de ilusão que talvez valha a pena manter com a ressalva de que estamos conscientes dela.
Num texto de John Gray sobre os astecas, constato uma nova maneira de ver a violência. Para eles havia um caos subjacente, e a violência do Estado refletia a violência do cosmo e dos deuses. Matavam gente em larga escala, em sacrifícios ritualescos. Foi como se percebessem que não podiam abrir mão da violência e decidiram santificá-la. Segundo Gray, conferiam um lugar central para os impulsos, algo que o pensamento moderno nega.
Os astecas não se chocavam se seus governantes se comportassem com a arbitrariedade de um deus. Para eles, os seres humanos estavam fadados a viver num mundo em que os governantes eram seus inimigos, mas asseguravam um tipo de ordem que, sem eles, não seria possível.
Tudo isso ficou nos tempos remotos. Mas a violência reaparece sempre com nova roupagem. Os guerrilheiros tâmeis no Sri Lanka inventaram o homem-bomba, mais tarde encontrado no Líbano. Era uma violência destinada a construir um novo mundo. Terroristas árabes detonam suas bombas com a esperança de encontrar dezenas de virgens no além.
O pensamento ocidental, segundo Gray, formula saídas ilusórias como a tese de Thomas Hobbes segundo a qual os humanos temem a morte violenta e fazem um contrato para instaurar um governante de poderes ilimitados que exija obediência. Para Gray é uma visão enganadora, porque os humanos em Hobbes são fantasiados para inventar a solução de um problema que não conseguem resolver: conciliar os imperativos da paz com as exigências de suas paixões.
Durante algum tempo cheguei a pensar que a paz era o horizonte da humanidade. Uma ilusão estimulada pelo fato de as grandes potências, nos últimos anos, não fazerem guerra entre si. Mas temem o poder de destruição de um conflito atômico e fazem inúmeras guerras por procuração: armam, treinam aliados, invadem e bombardeiam outros países.
Hoje é dia de refletir sobre o Natal. Mas o Natal não pode ser comemorado em Belém, onde Jesus nasceu. É a guerra. Esse próprio momento de solidariedade e respeito ao próximo que o cristianismo nos oferece pode ser visto de outras maneiras.
No livro “As cruzadas vistas pelos árabes”, Amin Maalouf nos revela a violência cometida pelos cristãos, que degolavam homens, mulheres, crianças e devastavam tudo por onde passavam. Ele diz: tudo leva a crer que, com o conhecimento dessas guerras dos tempos passados, ainda será necessário muito tempo para compreendermos os dramas e os tormentos do mundo de hoje.
Escrevo este artigo no Brasil, onde crianças morrem por balas perdidas, mulheres e gays são assassinados com frequência, há uma polarização política insana que pode resultar em sangue, escrevo, portanto, num lugar em que é preciso tentar entender a violência.
Minha fé na humanidade foi reavaliada neste ano de 2023.
Prefiro considerar as conclusões de Gray:
— Nenhum outro animal busca a satisfação dos próprios desejos, passa a vida no terror da morte, mas se dispõe a morrer para preservar uma imagem de si mesmo; mata a própria espécie em nome de sonhos. Não é a autoconsciência, mas a divisão de si mesmo, que nos torna humanos.
Em meu favor, devo dizer que já intuí isso. Quando Luiz Eduardo Magalhães pediu que votasse na Câmara em nome da bancada de um homem só, na época o PV, respondi:
— Não é fácil, sou apenas um, mas muito dividido.