Linchamento

Por que será que começaram a me linchar neste terreno baldio? Entrei aqui para descansar um pouco nesta longa caminhada sem rumo. Me perdi porque perdi o gosto de viver e nunca tive coragem de me matar. Nasci de uma mãe e um pai que nunca conheci. A primeira lembrança que tenho é o cheiro do lixão onde um dia acordei. Sobrevivi comendo restos. Tomei poucos banhos na vida. Os trapos que me cobrem achei por aí. Nunca roubei, nunca matei, nunca feri, nunca entrei numa igreja, mas já segui de longe uma procissão. Cristo não salva. Não entendo o ser humano. Me olham com dó, me olham com raiva. A primeira pancada que levei foi na boca. Quase engoli os restos dos meus dentes podres. Vi quando chegou o primeiro gritando que eu era o tarado do bairro. Não sei o que é sexo. Nunca tive vontade. Depois vieram os outros. Me furaram, cortaram o meu pinto e um cachorro vira-lata saiu com ele na boca, o sangue deixando um rastro. Agora tem um garoto com cara de anjo erguendo uma barra de ferro. Ele e outros me chutaram e me arrastaram antes. Vai acertar minha cabeça. Que bom. Finalmente vou descansar. E nem pedi este favor. Obrigado. (Cabeça de Pedra)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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