Trecho de ‘A Noite de Lucia’, com roteiro de Alice Ruiz e desenhos de Julio Shimamoto.
Nos anos 1970, em plena ditadura militar brasileira, o casal de poetas Paulo Leminski (1944-1989) e Alice Ruiz afrontava o regime com desenhos pornográficos. Após mais de 35 anos, os quadrinhos da dupla estão compilados em “Afrodite”, coletânea que chega às livrarias.
O livro traz a produção dos autores publicada nas revistas da extinta Editora Grafipar, no fim daquela década. Eles faziam os roteiros enquanto quadrinistas ficavam responsáveis pelos traços.
O resultado: desenhos repletos de corpos nus e diálogos que fariam um general corar.
Ruiz entrou para o universo das HQs em 1978. Ela escrevia para a revista “Atenção”, único título da editora que não tinha material erótico. Os demais eram calcados no sexo —como a masculina “Eros”.
“Então criaram a ‘Rose’, voltada para mulheres. Foi quando me contrataram para coeditá-la”, diz. “Em seguida, criei e editei também uma de astrologia: ‘Horóscopo de Rose’. Nas duas eu incluí HQs.”
CUNHO FEMINISTA
Apesar de erótico, o conteúdo tinha cunho feminista e buscava não objetificar a mulher no sexo.
“Meus roteiros eram construídos de forma a mudar esses significados, propor relações mais inteiras e, em alguns casos, ironizar os papéis ‘estabelecidos'”, afirma.
Ruiz pegou gosto por HQ trabalhando com Claudio Seto, artista responsável por popularizar o mangá no Brasil e pelo time de desenhistas da Grafipar —que, somando todas as publicações da casa, vendia uma tiragem mensal de 1,5 milhão de exemplares.
“Na ‘Peteca’, revista erótico-educativa de 1976, publicávamos HQ importada”, diz Faruk El-Khatib, então diretor da editora. “Claudio Seto disse: ‘Você não quer substituir por uma nacional?’ Topei e ele trouxe um pessoal muito bom.”
HQs de Alice Ruiz e Paulo Leminski
Eram tempos em que os artistas atuavam “tomando muito cuidado com o que se falava e escrevia”, afirma Ruiz. “Creio que todos desenvolvemos uma escrita nas entrelinhas naquela época.”
Mas a Grafipar tinha um trunfo: um censor amigo.
“Em 1975, um gerente da Varig me falou de uma mala extraviada”, conta Faruk, que também editava a revista de bordo da companhia.
O editor foi ajudar no caso e, no trâmite de aeroportos, conheceu um policial federal da censura. Ficaram amigos, e o censor passou a orientá-lo sobre como passar o material pelos militares. “Ele dizia para mudar algo e mudávamos.”
Em 1979, com o afrouxamento da censura, veio o declínio da publicação.
“Com a pornografia pura liberada, o pessoal não queria mais saber de HQ erótica”, diz Faruk. Ironicamente, a liberdade de expressão pela qual tantos lutaram levou a Grafipar a fechar as portas naquele ano.
AUTORES Alice Ruiz e Paulo Leminski|EDITORA Veneta\R$ 54,90 (112 págs.)
Folha de São Paulo
Uma resposta a Livro reúne HQs eróticas de Alice Ruiz e Paulo Leminski feitas na ditadura