Ivan Lessa morreu sexta-feira, dia 8. Mas o escritor que eu amava morreu muito antes, em algum momento dos anos 80. Assim mesmo eu continuava a ler as três colunas semanais dele, no site da BBC Brasil. Às vezes o fantasma do velho e furioso Lessa do Pasquim reaparecia. Era o suficiente. Sem falar que eu era fiel, como se lidasse com um tio querido. Sim, um tio querido, apesar de ser um tremendo filho da mãe. Bem, a morte não me surpreendeu. O próprio Lessa a tinha anunciado há anos, ao falar dos efeitos de dois maços de Marlboro por dia, durante décadas, sobre seu pulmão.
Abaixo, em vez de lágrimas, um texto antigo meu, do tempo do único livro de contos dele.
Um escritor da fuzarca
Duvido mas, vai ver, é coisa minha. Não passei incólume pelo Ivan Lessa e sou incapaz de lembrar mais de cinco ou seis nomes dos quarenta membros da Academia Brasileira de Letras. Pior: alguns dos lembrados, como José Sarney e Josué Montello, fazem parte do folclore da mediocridade e do oportunismo, nada tendo a ver com literatura.
Já se viu onde quero chegar: dezenas de escritores que atacam no que chamam de gêneros maiores — romance, poesia, ensaio e, com algum favor, conto — nunca me disseram nada, mas Lessa, militante da crônica — gênero considerado digestivo —, me disse muito, principalmente nos tempos do Pasquim. Poderia resumir tudo numa frase: ele não tem obra, mas tem estilo. Só que isso me incomoda, como se viu: os outros têm a dita obra e ela serve para quê? Eu prefiro uma crônica brilhante a um romance medíocre. Eu prefiro um comentário sensato de poucas linhas a um longo ensaio ilegível ou que não sai da decoreba escolar, vide Harold Bloom. Quer dizer, é preciso examinar direito esse negócio de obra. A própria palavra não soa bem, ou você consegue levar a sério gente que a diz a sério? Fico me lembrando de Borges: ele recusava a palavra obra dizendo que seus livros não passavam de rascunhos casuais. Claro, trata-se de uma gozação, mas quantos são capazes de gozarem os outros gozando a si mesmos? Mais um detalhe: quantos desses acadêmicos criaram um personagem tão vivo como Edélsio Tavares?
Não se pensa em Lessa como contista. Lessa é o cronista, é o humorista — ele e Luis Fernando Veríssimo. Os outros não contam, são fichinhas. Só podemos compará-los com os mortos: Rubem Braga, Antônio Maria, Nélson Rodrigues. O volume Garotos da Fuzarca, lançado pela Companhia das Letras, não chegou a modificar a situação, talvez porque alguns dos contos selecionados se confundam com o noticiário ou finjam ser notícias, ou são paródias descaradas, ou parecem não pertencer a gênero nenhum, como aquele maravilhoso roteiro para se percorrer Londres. Ou simplesmente porque não houve outros dez volumes — no Brasil é preciso insistir, dizer presente todo santo dia. Ou porque Garotos é pequeno — no Brasil tamanho é documento. Se Garotos tivesse quatrocentas páginas, você ia ver.
Mas Lessa não está nem aí. O negócio dele é tomar nota. Mexendo nuns recortes, encontro um Diários de Londres onde ele fala disso: “Estão aqui as anotações todas, os recortes todos, as revistas todas rabiscadas. Agora pegar tudo e transformar em matéria (…).
“Por que transformar em matéria? Como poderia eu aspirar à pura urgência, o código desesperado, da inscrição contida no maço de Marlboro? Assim: acti., pledge, aciq. me eng., stunt. Isto está vivo, respira. Sem deus e sem dono. O problema é que as pessoas estão escrevendo muito e tomando poucas notas. Tomar notas é a mais sublime das artes. Quase música. Do século XVII, evidentemente. A música do século XIX é vulgar. Viram? Viram a tolice em que dá não se limitar às notas? ‘Música do século XIX é vulgar.’ Mentira, grossa mentira. Quase que, à maneira de Fausto Wolfe, fazer restrições à Tiny Alice, do Albee.
“Aos gentis leitores deste hebdomadário, em estado bruto, diamantes por lapidar, estas notas que não buscam pauta. (…)
“É que do momento em que você começa a pôr em ordem — atenção, vou tentar evitar parecer ‘engraçadinho’ — perde a função específica, primordial, inescapável, do atônito e mudo desespero de um segundinho correndo atrás de outro segundinho sem dar a menor pelota para você e o que você pretende fazer ou achar das coisas. O longo e prolongado uivo de indagação e de indignação. Impossível. Impossível escrever sem virar engraçadinho, uma coisa bem feita, razoável. Provável até. Nós procuramos chaves porque inventamos fechaduras. Mas — e o silêncio? Como honrá-lo, preservá-lo? O longo e prolongado uivo. A Baixada Fluminense da Alma. Não estou dizendo? Está demonstrado? A total impossibilidade de manter inviolável o segredo da dor?”
Traçando um mapa
Eu lia Ivan Lessa com uma caneta na mão. Coisa de adolescente, sim, mas nem todos os autores da minha adolescência me levaram a sublinhar frases, a anotar parágrafos como se traçasse o mapa do mundo. Como, uma vírgula. Eu estava tentando traçar o mapa do mundo e de quebra, claro, me localizar nele. Como outros no seu tempo queriam aprender a fumar como Humphrey Bogart, ou caminhar com a ginga do caubói na hora do duelo, eu queria aprender a técnica de Ivan Lessa, aquele jeito matreiro de dizer as coisas aliado à tirada seca, fulminante. Agora, antes estava o poder de descobrir numa olhada o ponto podre ou sólido do livro, do filme, do que fosse que estivesse comentando. A lucidez e velocidade de Lessa, mais do que o veneno — coisa pra coral nenhuma botar defeito —, faziam e fazem minha delícia e meu espanto, sem falar na coragem ou loucura, se quiserem, de dizer em público aquilo que a maioria não tem peito nem de pensar em casa sozinho. Havia ainda a linguagem. Eu estava em busca do idioma brasileiro, esse idioma misterioso, entreouvido em algum papo ou samba no bar da esquina, em algum xingamento no sinal fechado, na confissão do meliante ao delegado de plantão, quase nunca escrito em livro, conhecido só por quem sabe a diferença entre garçom e garção. Lessa, entre as costumeiras gozações aos clichês, tem como poucos na ponta da língua a melodia, inculta e bela, da última flor do Lácio.