Nem o Satanás está a salvo

Eva era uma gostosa, pois, fosse ela feia, Adão teria dado ouvidos a Deus, certo?

Nem o Satanás está a salvo. Coitado. Entidade espiritual que carregava uma certa dignidade e consistência ao longo dos séculos de existência, ele orbitava ao redor do que, grosso modo, se chamava de mal. Sei que já o mal não existe e que essa diferença entre bem e mal não passa de uma invenção do cristianismo, do patriarcalismo e uma imposição dessa sociedade que nos quer apartados dos nossos desejos.

Mas qual era essa dignidade que o coitado do Satanás perdeu e do que nem mesmo o pobre coitado está a salvo? E quem é esse Demônio suave que surge em comunidades satanistas agora?

Antes de tudo, vamos esclarecer que estamos diante de um personagem. Assim creio. Construído ao longo da história ocidental a partir de restos daqui e dali, o Satanás acabou por se constituir na figura que povoa a imaginação de muitos, chegando mesmo a quase merecer um Oscar. E se essa construção nos remete às mentalidades que a construíram, esse novo Satanás, que percebe-se brotar no discurso do satanismo light que encanta adolescentes hoje em dia, também ilumina quais seriam alguns dos traços dessa mentalidade que cultua um Demônio suave.

Claro que não vou perder tempo e espaço aqui fazendo diferenças sutis e obsessivas entre Satanás, Demônio e Diabo. Trato os termos aqui como sinônimos.

Vamos à primeira questão acima citada. Sua dignidade consistia em seu gozo em nos torturar. Essa tortura era, basicamente, excitar nossos desejos levando-nos a transgredir a norma divina. Já no relato do Gênesis, o personagem aparece tentando Eva, provavelmente, uma gostosa (única hipótese possível sobre Eva, pois, fosse ela feia, Adão teria dado ouvidos a Deus). A partir daí, ele enlouquece homens e mulheres, os deixando furiosos em busca da realização de seus desejos mais obscuros e violentos. Nosso personagem era conhecido por nos visitar nos sonhos, fazendo sexo conosco ou nos afogando em projetos de poder, vaidade e violência.

Sua crueldade era tal que sua representação era quase sempre a de um deformado, deformando corpos e almas para a eternidade, sendo o inferno seu lar. O medo do inferno formou inúmeras grandes almas ao longo da história. Alguns de nós chega mesmo a acreditar que talvez Deus não exista, mas o Satanás sim, devido à simetria moral entre o dito personagem e o estado do mundo em que vivemos.

No cinema, então, nosso personagem fez história. Da adolescente Linda Blair do “Exorcista” até inúmeros filmes mais ou menos bons (passando pelo grandioso “A Bruxa”), o cinema deve uma parte de sua bilheteria milionária ao fiel Satanás. Às vezes belo e irresistível, no corpo de um homem ou de uma mulher, às vezes monstruoso e asqueroso, o fiel Satanás fez a noite de muita gente ter mais ação e imaginação do que os personagens mais bonzinhos do cinema.

Portanto, sua dignidade e consistência eram sua capacidade de nos colocar além dos limites morais, processo esse delicioso em si mesmo. Ninguém jamais temeria o senhor do pecado, não fosse o pecado, em grande parte, uma delícia.

Vamos à segunda questão. Do que nem mesmo o pobre Satanás está a salvo? Resposta direta: da banalidade do narcisismo de bolso que alimenta nossa revolução moral moderna, conhecida como egoísmo libertário.

O pobre do Satanás virou a justificativa banal para você ser você mesmo. Alguém conhece ideia mais descabida do que precisar da autorização de uma entidade, outrora responsável pelos maiores terrores da alma e pela destruição do paraíso divino, para você viver suas pequenas taras que cabem no Instagram? O pobre do Diabo virou uma espécie de coach de bolso para você justificar seu mau-caratismo e falta de educação.

Portanto, nem o Satanás está a salvo da infantilização geral do mundo. E aqui chegamos à nossa terceira questão. O Demônio suave dos satanistas do bem que povoam as redes é um demônio que não dá medo a ninguém, pelo menos a ninguém que já viu um adolescente revoltado em seu quarto seguro. Pensar em você mesmo, antes de qualquer outra pessoa, sem culpa, é ser o que qualquer demonólogo decente sabe ser a versão mais infantil do Satanás. Eis a suavidade satânica da era em que vivemos.

O Satanás real, aquele que valia a pena respeitar, era o ser que estabelecia o dilaceramento moral essencial da vida ética. Mesmo acreditando nas virtudes, você não resistia aos vícios. E não à figurinha teenager que confunde o Demônio com uma tattoo supercool.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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