Macalé

Lanny, Macalé e Tutty. Foto sem crédito.

Jards Macalé, primeiro disco do cantor carioca, é um dos trabalhos mais inusitados da música brasileira. Um disco até hoje duro de ser conceituado – e por isso mesmo genial, e tantas vezes esquecido. Feito após Jards ter passado por experiências diversas como músico, o álbum marcava sua transição para a via pop, revolucionando a música brasileira ao mesclar rock, samba, eruditismo, jazz, bossa-nova, tropicalismo, melancolia e sofrimento em doses cavalares. Gravado às pressas, da forma mais minimalista possível (com Jards no violão, Lanny no violão solo e no baixo e Tutty na bateria), o disco traz uma sonoridade crua, anti-comercial, com letras que chegam a soar punks. O LP abria com “Farinha do desprezo”, quase um b desconstruído, misturado com samba e jazz (a letra: “só vou comer agora da farinha do desejo/alimentar minha fome para que nunca mais me esqueça/como é forte o gosto da farinha do desprezo”).

Uma vinheta com b a capella – cantada de forma quase fúnebre, fantasmagórica mesmo – antecede o forrock “Revendo amigos”, que chegou a ir 12 vezes para a censura, encucada com versos como “se me der na veneta eu morro/se me der na veneta eu mato”. Numa época em que Roberto Carlos era rei, Jards só oferecia romantismo em faixas originais como o quase-samba “78 rotações”, na voraz “Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata” e na desolação de “Movimento dos barcos”. O lado mais característico de Macalé, no entanto, era a faceta melancólica e existencial de faixas como o rock “Mal secreto” (“massacro meu medo, mascaro minha dor, já sei sofrer”) e o hino “Let’s play that” (“vai, bicho/desafiar o coro dos contentes”, dizia a letra de Torquato Neto). Num viés tenso, repleto de improvisos roqueiros ao violão, em que não havia oposição entre tristeza e felicidade, alegria e melancolia (“dessa janela sozinha/olhar a cidade me acalma/estrela vulgar a vagar/rio e também posso chorar”, diz a letra de “Hotel das estrelas”, que fechava o disco), Jards Macalé também trazia o rock´n roll suicida e ágil de “Farrapo humano” (de Luiz Melodia) – sintomaticamente seguido pelo samba
“A morte”, de Gilberto Gil.

A ousadia custou caro: Jards Macalé acabou tendo pouca tiragem e logo foi tirado de catálogo. O cantor iniciou uma série de shows, mas continuava com problemas de colocação no mercado. Em 1973, liderou na b um misto de show-disco coletivo, O banquete dos mendigos, feito por ele e por vários amigos para comemorar o aniversário de 25 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e, de quebra, ajudar a tirar a conta de Macalé do vermelho: o show foi feito, mas o disco ao vivo acabou sendo completamente censurado e só liberado em
1979 (e já pela RCA).
Texto de Ricardo Schott

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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