Lançada no Brasil em 2006, a obra “As Duas Mães de Mila”, de Clara Vidal, está fora de catálogo (achei meu exemplar na Estante Virtual). Ainda assim, resolvi escrever esta resenha, pois li o livro recentemente, de um fôlego só, e estou há dias obliterada por suas breves e densas páginas.
Mila tem duas mães. A que ela chama de “rosa” é terna, amorosa e equilibrada (e, quando a filha está doente, a trata tão bem que a garotinha até torce para ficar enferma); já a “cinza” é cruel, indiferente e profundamente destemperada. Com o passar dos anos, a relação abusiva piora: a progenitora tenebrosa e tirânica humilha a própria cria sempre que pode, lhe dando presentes sujos, quebrados, com pedaços faltando e exigindo que a menina se sinta grata.
Mila precisa se agarrar a alguém, pedir socorro, contar o que passa em casa, então tenta se abrir com a melhor amiga, o pai, a avó. Mas assim que começa o desabafo, percebe os olhares julgadores: todos acreditam que está ficando louca. E assim, dos 9 aos 15 anos, acompanhamos o adoecimento da personagem através de um relato extremamente triste e corajoso. A garota desenvolve transtorno alimentar, transtorno obsessivo compulsivo e, “estranha que é”, passa a ser vista como problemática, sociofóbica e causadora de todo o sofrimento de sua família.
Quando pensa que nasceu do corpo daquela mulher, que passou pela vagina daquela pessoa que a trata dessa forma indigna, Mila não consegue controlar a ânsia de vômito. E, quanto mais magra e apática fica, mais seus pais ignoram os únicos alimentos dos quais a filha precisa: acolhimento e afeto.
Crente que conseguiu finalmente deitar no colo de uma mãe bondosa, Mila sente os espinhos. Crente que agora vai poder odiar a mãe terrível, é agraciada pelos carinhos da mulher dedicada e querida. Como saber o que sentir na presença de uma mãe dupla? Para dar conta de um mundo de ponta-cabeça, a menina passa a contar e organizar tudo compulsivamente.
Já adolescente, Mila demora a menstruar pela primeira vez. Lá no fundo, tem medo de se tornar mulher e ser ainda mais massacrada. Quando acontece, esconde de todos o sangue que lhe escorre pelas pernas. E, ao ser descoberta, corre oprimida para o banho sob os xingamentos de porca e imunda.
Para não dizer que ela está completamente só neste mundo (quer solidão e desgaste maior do que ser acusada de maluca pela própria mãe maluca?), Mila tem ao seu lado a narradora do livro —muito provavelmente ela mesma, já escritora e em um futuro possível depois de muita terapia.
Ela ainda não sabe, mas sua principal aliada será a persistência em não desistir da vida. Mila escreve para escoar e ecoar sua dor e dar um contorno ao seu corpo. Sim, a escuta analítica (e sua coragem para o quase indizível) lhe dá a subjetividade que a livra da psicopatia e o amparo materno tão necessário para crescer. E esse é o único alívio que você vai sentir ao ler essas páginas.
Nas palavras do psicanalista Paulo Schiller, que traduziu a obra: “Mila não é única. A história de Mila não é incomum como desejaríamos que fosse”.