Máximo no mínimo

Pássaros de Rogério Dias.

“Conversa de Passarinhos” traz o diálogo em haikais
das escritoras Alice Ruiz e Maria Valéria Rezende

Sob a rubrica “Haikais Para Todas as Idades”, na charmosa coleção “Livros da Tribo”, que já nos deu Quiroga e Emilio Salgari, a editora Iluminuras acaba de lançar “Conversa de Passarinhos”, ou melhor, de “passarinhas” – entre a veterana haikaísta Alice Ruiz e sua “discípula”, a poeta-escritora Maria Valéria Rezende. A obedecer a tradição oriental de um diálogo entre “mestre” e “aprendiz”, aqui, contudo, os papéis se embaralham, no que este escriba, também seduzido de longa data pela prática do haikai, mais do tanka –historicamente seu predecessor– , autoriza-se a introduzir esta reflexão sobre o livro recém-publicado, assim:

conversa de passarinho
– deles dois
quem melhor trina?
Advertindo, desde já, que não se trata de livro, a exemplo dos romanções da última safra norte-americana, que se conte por telefone, pois, para começo de conversa, não é livro que se leia com disciplina cronológica e compulsiva, da primeira à última página. Caixa de haikais, melhor guiar-se pelo que desordenadamente olhos e atenção acertam ou desacertam com a página a esmo –aqui um pardal de Alice, ali a “ema periscópio” de Valéria. Para que pressa? Tigela? Tigela e meia!

Desse modo, ponho também, já de início, um reparo na reunião de haikais: a ordem imposta à obra, com a fixidez, a cada página, do poema da “mestra” primeiro e o da “discípula” invariavelmente depois, sugere criar uma “regra”, onde o “desregramento” deveria prevalecer. Contradiz de certo modo a conversa de passarinho, pois, esta, já se disse, ninguém nunca não sabe quem primeiro trina… Melhor teria sido uma algaravia de sons, os sonidos do tico-tico. Ao longo de todo o livro, sem exceção, Alice Ruiz dá o mote, e Valéria Rezende como que responde, alguma vez de viés, uma não-resposta. O que, evidente, reafirma o inútil de Alice preceder invariavelmente Valéria. Desnecessário: confundir seria mais exato e melhor de acordo com que passarinho entoa.

Não precisa dizer que, nas mais de 70 páginas do volume, tanto “haikais-motes” quanto “haikais-retrinos” são imantados, contudo, de intenso brilho. O máximo no mínimo, a graça e a leveza dessa expressão poética chegada com os japoneses ao Brasil, há um século, a bordo do legendário Kasato Maru. Dispensável de mesmo modo a rubrica, advertindo textualmente na capa do volume que se tratam de “haikais para crianças de todas as idades”. Como a própria mestra Ruiz informa no prólogo, a busca de todo haikai que se preza é pelo “haimi”, a significar a “essência” que a milenar “invenção” poética japonesa extrai de tudo e de todas as coisas. Sejam eles mini ou portentosos eventos –da vida, da natureza, das estações do ano. “Haimi”, ensina Alice, quer dizer “sabor de haikai”.

E esta “essência”, por si só, não tem idade a que se destine. Mesmo porque o haikai –não ignora Alice Ruiz nem Maria Valéria Rezende– é ou não é. Descarta público-alvo, qualificativos, escalas de maior ou menor grandeza. Só impõe que seja o máximo no mínimo, três versos e, de preferência, mas não necessariamente, 17 sílabas poéticas (5/7/5).

E mesmo tais “normas” métricas, aparentemente exigidas pelo haikai, nem sempre foram aplicadas –a meu ver de modo criativo e adequado– ao haikai exercido no Ocidente. Dos “beats on the road”, dos anos 50 americanos, a, no Brasil, Guilherme de Almeida, Afrânio Peixoto, Oswald de Andrade, Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Olga Savary, Carlos Verçosa, Helena Kolody. E, principalmente, ora direis ouvir estrelas, por Alice Ruiz, cuja fidelidade ao haikai é de todos conhecida, ao lado de sua notória mestria no trato com o “gênero”. Possivelmente nossa maior haikaísta em atividade.

E ela que nunca quis ser professora de nada, como destaca na orelha do volume, resolveu um dia viajar este país, aonde fosse convidada, para promover oficinas de haikais. E vem fazendo isso há quase 20 anos. Com resultados surpreendentes, como é o próprio “Conversa de Passarinhos”, pois foi em João Pessoa, na Paraíba, num desses “ateliês” do poema-minuto nipônico, ao qual a conhecida escritora Maria Valéria Rezende se inscreveu, que se deram o encontro e a idéia de compor o livro.

Daí a interlocução entre “mestra” e “discípula”, que, no melhor estilo oriental, norteia os gorjeios deste “Conversa de Passarinhos”. Diálogo de cicios. Uma vezes álacres; outras, apenas sussurros, e até diálogos de silêncios, num prosear em torno de tudo o que na vida é passarinho e manhã, asa e tarde, águia e vôo, papagaio e primavera, romã e beija-flor, a noite, a floresta.
Dá o mote a
“mestra” Ruiz:

primeira estrela
ainda menor que ela
último passarinho

Feito uma “resposta” no telégrafo sem fio da poesia, a “discípula” Maria Valéria não deixa por menos:

na mata escura
canta o urutau para a lua
que hoje veio nua

A aposta na vida e na “imanência” das coisas ainda que impermanentes, a precariedade de nossa vida provisória assinalada não para morrer, mas para “passar”, como “passam” as estações, o rito nupcial das aves, o tempo da flor e do fruto –ainda que sempre em eterno retorno– confundem-se com a prática original do

haikai.

Mais que uma forma de constructo da velha “poesis”, esclareça-se, o haikai é, digamos, uma ética, uma celebração, sempre epifânica, não importa se do dia ou da noite, do frio ou do calor, do fim ou do começo, do inverno ou do verão. Tempestade e bonança, tristeza e alegria são tudo uma mesma coisa nos aponta a búdica lição do mestre-inventor.

sol ou lua
é sempre mesma
a luz da rua

Ao mais zen dos discípulos de Bashô (1644-1694), nem por isso menos mestre ou inventor, Morikawa Kyoriku (1656 -1715), atribui-se o haikai acima, traduzido para o espanhol por Octavio Paz, o sedutor poeta-pensador mexicano, um dos mais lúcidos entusiastas das coisas & loisas do Oriente entre os hispano-americanos. Precedido, anote-se, impossível ignorar, pelo apaixonado empenho, em favor do tanka e do haikai, de outro mexicano, José Juan Tablada (1871-1945), que já em fins do século 19 ocupava-se deles. Capaz, todos sabem, da composição de um insuperável clássico da área:

tierno saúz
casi oro, casi âmbar
casi luz
(tenro salgueiro
quase ouro, quase âmbar
quase luz)
Neste “Conversa de Passarinhos”, face ao mar imenso, por exemplo, “mestra” e “discípula” outra vez trocam o insight do olhar deitado sobre igual paisagem, sem fugir dos pássaros, o motivo maior, claro, destes canto e contracanto. E rediz Alice, monja haijin a indicar a pauta de pipilos alvoroçados nos rochedos:
linhas d’água
linhas das marisqueiras
linhas de pássaros


Já a “discípula” Maria Valéria propõe que, de seu ângulo praieiro, as coisas que lhe percorrem a alma, feito uma fome, são:

piscinas na areia
mariscos e sargaços
banquete de pássaros

Em outros momentos, até o “ritmo” quem determina é o redobre em lá sustenido de Ruiz, ave acesa:


pensa e pende
pousa e passa
o periquito

Ao que Rezende complementa, em mesmo tom, com uma graça inesperada, pura surpresa ao catar entre os milhares de espécies canoras, justo a mais rara e de duplo significado – as lavandiscas, que tanto podem ser uma espécie de ave do Norte como podem significar o outro nome da libélula:

passa e fica
na poça, sem pressa
a lavandisca
E assim, gentil leitor, sucessivamente segue o livro. Numa profusão de aves e chilreios, do vôo do sabiá fora de foco na foto (Alice Ruiz) à longa cabeça da ema surgindo dentre o capim alto, a vigiar a tarde, sem tirar nem pôr, um periscópio (Valéria Rezende). Impossível encerrar esta reflexão sobre passarinho e haikai, sem destacar uma terceira parceria no livro: a do ilustrador Fê, mágico e diábolico, a pontuar, página a página, páginas inteiras, com leveza de traço que, por vezes, não erro, parece fazer escapar do espaço gráfico, indiscerníveis, não sabemos de imediato se um quero-quero ou um sabiá, uma anhuma ou um bando de andorinhas.
Só bico e asa, a grafia bailarina que todo pássaro encerra, ali na ponta do lápis ou, esgarça, esmaecida mancha do grafite raspado sobre o pólen da página. Com graça e engenho –asseguro não exagerar– , as ilustrações do artista paulistano, abaixo da linha do silêncio, por vezes em um só traço contínuo, nunca interrompido, são capazes de pôr para sempre no mundo um passarinho! Só faltam emitir, eles também, os desenhos, o mais rumorejante cicio. Puros haikais, saídos de releitura gráfica cúmplice dos poemas, que passa, ela igualmente, a integrar, de modo irreversível, a obra como um todo. Nunca “Conversa de Passarinhos” será o mesmo, acredito, sem as intervenções avoantes de Fê.
Um livro, senhores, para nos conciliar não só com a “precisão” do haikai, que sendo haikai na extensão da palavra, nisso tem que ser indiscutível. Mas a indicar, principalmente, que o Sanatório das Letras Tupiniquins pode viver, com um trabalho como este “Conversa de Passarinhos” – entre um acesso e outro de insana mediocracia–, seu breve contra a náusea.
Não há melhor antídoto, estamos cientes, contra a Ignorância, do que o Saber, capaz de enxergar a vida e os eventos da vida, não com olhos de criança –singeleza simplória demais para um haikai–, mas com olhos de astuto monge que reencarnou, em sua sapiência de velho, a infância do mundo e, com ela, o mundo inteiro.

Publicado em 19/12/2008. Wilson Bueno. É escritor, autor de, entre outros, “A Copista de Kafka” (ed. Planeta).

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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