Meio milhão

Meio milhão de qualquer coisa é muita coisa, umas a gente nem nota, outras a gente vai levando, algumas se atura. Meio milhão de vidas perdidas é tragédia insuportável.

Meio milhão de atestados de óbito é papel tamanho ofício que não acaba mais. Milhares e milhares de resmas que um dia foram celulose que um dia foram árvores que um dia foram matas. Meio milhão de documentos que ocuparam centenas e centenas de cartórios com milhares e milhares de tabeliães durante meses e meses.

Meio milhão de caixões é caixão pra desolar. Cada caixão precisa de uns 4m2 de madeira, aí já vão 2 milhões de m2 de madeira. Que um dia foi árvore que um dia foi floresta e que agora é um desmatamento mais doloroso que os tristes desmatamentos de sempre. E cada caixão leva uns 100 pregos, vários ornamentos e seis puxadores, feito por milhares de marceneiros que um dia tiveram muito menos trabalho.

Meio milhão de velórios, apesar de breves e quase sem presença, é velório inimaginável. Para tanto serviço fúnebre, milhares de funerárias nos 5.568 municípios brasileiros e no distrito federal atenderam dia e noite, semana após semana, mês após mês. Funerárias que nem sempre tiveram tantos clientes e faturamento tão alto em tão curto prazo.

Meio milhão de enterros é cova das mais profundas, é como desenterrar uma montanha de terra e depois ter que aterrar de novo. São sete palmos de esforço e suor de milhares e milhares de coveiros que um dia tiveram dias de folga. E muitos coveiros tiveram que enterrar corpos que um dia foram seus parentes, amigos e conhecidos. O que também vale para os crematórios, em câmaras ardentes com milhares de cerimônias semi desertas que em dias sem protocolo sanitário foram lotadas. Crematórios que consumiram gás como jamais foi consumido, que um dia foi fóssil que um dia foram animais vivos como foram os entes queridos cremados, agora cinzas e nada mais.

Meio milhão de defuntos é cadáver que não tem onde meter. Foram corpos acumulados, amontoados, empilhados nos IMLs por todo o país, atulhados em contêineres refrigerados nas maiores cidades. Tantos corpos que as 24h de cada dia foram insuficientes para infindáveis autópsias e tão exaustos legistas, embora a multiplicação funcional de milhares deles.

Meio milhão de mortos em ano e meio é falecimento incompreensível: é como se o Brasil não tivesse o SUS, a maior assistência pública à saúde no mundo. Como se a rede hospitalar não fosse tão competente e nem a medicina tão adiantada. Como se as exauridas equipes médicas e assistentes fracassassem na sua incansável dedicação 24h. É como se sacrificar no trabalho em um país onde a saúde pública foi negligenciada por um governo omisso em plena pandemia, como de fato é isso mesmo.

Meio milhão de vidas perdidas é o mesmo que um super terremoto devastasse uma cidade inteira. Como nossa geografia não tem nada com a nossa tragédia, é dor e lágrimas sem fim, sofrimento impensável para qualquer nação. Mas é também a gota d´água para a incapacidade administrativa e a desumanidade do deprimente da república. Ou o genocida cai ou não demora muito vamos chegar a um milhão de brasileiros mortos pela covid.

                                                   #ForaBolsonaroGenocida

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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