Memórias de Infância

Trópico, o site de arte e cultura do UOL, me encomendou uma longa reflexão sobre Cadernos de infância, de Norah Lange, que acaba de chegar às livrarias brasileiras, pelo selo da Record. Musa do modernismo argentino, uma das grandes paixões de juventude de Jorge Luis Borges, com estas memórias de sua meninice entre Mendoza e Buenos Aires, a ruiva, de estonteantes olhos azuis, filha de imigrantes noruegueses, nos legou uma obra-prima.

Não há poeta ou ficcionista que, com maior ou menor sucesso, não tenha se dedicado a lembrar sua infância, a maioria sob o condão do enlevo e do encantamento. Poucos, pelo viés da sombra. De Tolstoi a Graciliano Ramos, de Nabokov a Drummond. Quem há de esquecer, por exemplo, esta outra obra-maestra que é Infância (1945), do alagoano também autor de
Vidas Secas?

No Brasil, só ele, a meu ver, se aproxima, no gênero, das disturbadoras memórias infantis da escritora argentina. Infantis? Norah Lange não faz por menos com este livro que é uma sonora bofetada nos que pensam a infância baixo as tintas da pieguice e do sentimentalismo.

Não, senhores, a infância pode ser assustadora e turva; e pode que more nela não um, mas cinco mil bichos-papões no sótão, nos cantos, debaixo das camas e das mesas ou nos quintais onde se escondem, prontos ao bote, vultos, lacraias, ameaçadores cacos de vidro.

Cadernos de Infância, da cobiçada “pelirroja” portenha deve ter sido uma influência decisiva para o cineasta Carlos Saura chegar a outra obra-prima, essa cinematográfica, e disponível nas melhores locadoras, que é, sem erro, Cria Cuervos, (1976). Com Geraldine Chaplin em momento supremo. O livro, pasmem!, é de 1937, e esbanja a atemporalidade de que só a grande arte é capaz.

Cinco irmãs, cinco meninas, filhas de um rico empresário nórdico, perplexas, todas, com o que lhes caiu de chofre nas mãos: uma existência, uma vida, um destino. Não é pouca coisa, convenhamos. Da irmã que se compraz em destroçar pequenas feridas até que fiquem em carne viva, à morte do pai a sinalizar, precoce, que viver é absurdamente provisório; e os terrores, as manias angustiadas e angustiantes, hoje chamadas TOC, na malha das quais a protagonista se sente irremediavelmente aprisionada.

Isso aí só para vos dar, a grosso modo, reles panorâmica, gentil leitor, posto que esses “recuerdos” são, do primeiro ao último capítulo, todo em fragmentos, um terreno minado pela raiz. Nascer é ser abandonado neste mundo por Deus, como nos informa outro gênio da desilusão, Yasunari Kawabata. E, pelo visto, para Norah Lange, mais fera que bela, o desamparo humano se dá, cheio de unhas, é justo no começo do começo do mundo.

O Estado do Paraná (14/06/2009)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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