Meu primo é de (extrema) direita

Tati Bernardi – Folha de São Paulo

Tenho esse primo, 11 anos mais velho que eu. Crescemos juntos, alucinados pelos “tatus-bolinha” do jardim da casa dos meus avós. Sabe esse bichinho? Que ora é tatu e ora, principalmente se você o provocar, resolve dar um tempo de tudo e vira bolinha? Enfim, toda lembrança boa da minha infância tem lá a figura divertida, magra, alta e doce do meu amado primo: ele lia historinhas pra mim (depois que nós a inventávamos juntos), afinava a voz pra fazer o papel de uma professora histérica que me dava zero em matemática, deixava que eu o maquiasse, passasse batom, colocasse flor em seu cabelo. Nós tínhamos uma tartaruga, a Livia, e descobrimos, anos depois, que se tratava de um macho.

E tínhamos um gato vesgo, o Billy, que me dava tanta alergia que eu espalhava lencinhos com meleca por toda a casa –mas meu primo não se incomodava, até me ajudava a assoar o nariz. Um dia pedi que ele fizesse um furo na parede do meu quarto, para que eu tivesse um portal secreto para o quarto dos meus pais. Meu primo, que fazia tudinho que eu pedisse, não pensou duas vezes e pegou a furadeira, detonando, ao mesmo tempo, a privacidade (e a coerência) de dois cômodos. Ele ficou proibido, por algumas semanas, de vir brincar na minha casa. Foram os piores dias da minha vida.

Hoje, com quase 50 anos, meu primo virou um tiozinho reclamão, pão duro e, por escolha própria, ocupado apenas de suas plantas. Ele não suporta ninguém muito tempo em sua casa porque “as pessoas enchem o saco, comem, sujam, demandam coisas, falam merda”. Virou aquele tipo de homem que a gente esculacha sem dó nas redes sociais, tem certa aflição de receber em festas (principalmente se ele desatar a falar e tiver mais gente por perto) e transforma em personagem de eterna chacota enojada quando quer dar exemplos de como ser machista e preconceituoso. Vira e mexe ele posta coisas como “ninguém mandou vestir aquela roupa, aquela hora da noite” ou memes terríveis que comparam uma mulher decente com outra considerada vagabunda.

Agora, quando meu querido primo, que representa tanta delicadeza e beleza na minha história, que ama (ou amava até pouco tempo) os animais, a natureza, as crianças, as músicas clássicas e os livros de amor… quando ele abre a boca, eu só desejo virar bolinha, assim como a mascote mais adorada da nossa infância, e dar um tempo de tudo. Não consigo deixar de amar essa magnífica e adorável figura paterna, mas está puxadíssimo ter prazer em qualquer conversa. O que vocês fazem com os tios, primos, parentes em geral que acreditam nunca ter existido a ditadura? Que batem palmas pra declarações como as do tal Mourão gauchão? Que falam coisas como “já tá rodada”, “é pobre, mas é limpinha” e “deu sorte, a filha nasceu clarinha”? Que acreditam realmente serem os gays uma afronta séria e direta à vida das pessoas de bem?

Que conseguem pescar dos discursos do Bolsonaro, do Crivella e do Feliciano “muitas coisas boas”? Que assistem com gosto aos programas da tarde que mandam “dar porrada e tiro pra pôr ordem na casa!”? Que postam aquela foto de artistas se divertindo numa praia carioca com uma frase tosca que é mais ou menos assim: “Depois eles dizem que a ditadura foi a pior época…”. O que você faz com os parentes próximos queridos (porque já foram, em tantos anos e risadas e lamentos, psicologicamente misturados ao seu sangue) que resolvem, por falta de leitura ou de um pouco de arco-íris na massa cinzenta, personificar em carne e osso, dentro da sua família e da sua casa, o pior da opinião do leitor desse jornal?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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