Mia Couto – © Myskiciewicz
Acabo de conhecer Mia Couto e me apresso em apresentá-lo ao Grupo dos 13 – universo de leitores destas linhas. Mia, que se chama, no registro de nascimento, António Emílio, é um poeta, escritor e biólogo moçambicano, nascido na Beira, que já escreveu mais de trinta livros, entre prosa e verso. Por isso, já recebeu uma série de prêmios literários, entre os quais o Camões, em 2013, tido como o mais prestigioso da língua portuguesa.
Mia Couto me foi apresentado pelo velho camarada e amigo de fé Edson Dallagassa, através de “Terra Sonâmbula”, edição nacional da Companhia das Letras, considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX. Encantei-me desde a primeira linha. Além de escritor, Mia é um extraordinário contador de história. Mais do que isso: sabe brincar com as palavras, valoriza-as, reinventa-as à moda de Guimarães Rosa e tem plena consciência do que está fazendo. Com isso, enriquece a narrativa, obriga o leitor a raciocinar e, no fim, todos se sentem felizes e satisfeitos.
Vejam só o início do primeiro parágrafo:
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A pausa se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca.”
E um pouco mais adiante:
“Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse o seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante.”
Precisa dizer mais? A última frase foi o modo de Mia dizer “sem destino”. Genial.
Segundo a orelha do livro, “cada frase de Terra sonâmbula resulta de um meticuloso trabalho de lapidação poética e confere nobreza artística a seu material linguístico primordial: as mitologias tribais e os casos que circulam de boca em boca pelos meandros da cultura oral africana, bastão de resistência num país como Moçambique, devastado por quase trinta anos de guerra anticolonial (1965-75) e civil (1976-92)”.
Mia Couto está no Brasil ou aqui esteve como participante do Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado em Gramado (RS). Participou também da “Conversa com Bial”, na Globo, na última segunda-feira. E isso valeu-me duas certezas. Uma: o acerto da emissora platinada ao trocar Jô Soares por Bial. O programa de fim de noite ficou mais palatável, mais diversificado e mais inteligente. Pedro Bial sempre foi um excelente jornalista, muito mais preparado que o exibido e arrogante gordinho, cuja aposentadoria chegou em boa hora. Teve, é certo, um (imenso) momento de fraqueza, quando aceitou “animar” uma mediocridade chamada BBB. Mas parece haver-se recuperado a tempo, felizmente.
A segunda certeza: Mia Couto merece especial atenção. Não apenas pelo que escreve, mas também pelo que pensa, diz e faz. Como biólogo ativo, está a serviço da preservação da natureza. E, como intelectual, a serviço da inteligência e dos verdadeiros valores do ser humano.
Eis um trecho do discurso que proferiu na abertura do ano letivo do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique:
“A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.
(…)
“Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. ‘Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível’. O termo é curioso: ‘compatível’.
“Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objeto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.
“Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.”
Nada mais precisa ser dito.