Minha vontade de ser bicho

Em cena três mulheres conversam sobre três momentos definitivos em suas vidas: três despedidas. Um cão amigo, um quase amante que agoniza no hospital e a si própria, tomada por uma doença terminal. Pela literatura de Clarice Lispector essas três mulheres falam sobre momentos marcantes em suas vidas, quando a máscara teve que abandonar seus rostos. Nascimento, morte, amor, medo, revelação, felicidade, alegria, Deus, carne e sangue. Viver ultrapassa todo entendimento.
 A morte necessária em pleno dia…
 Encenar pedaços humanos é o grande desafio de “Minha Vontade de Ser Bicho”. Uma busca desesperada de entender porque a despedida pode ser o princípio das coisas. E há tanta Clarice Lispector que pode servir de guia para esta busca! Em cada momento da vida das três mulheres/atrizes/personagens que visitam este espetáculo, há um pouco de cada mistério de vida. Em que momento termina a carne e começa o espírito? E vice versa. Até que ponto as palavras, como flores de pano, são capazes de reproduzir sentimentos? Sim, porque as flores de pano até gostariam de ser tão verdadeiras quanto parecem, mas ao mesmo tempo em que lhes falta a alma silenciosa das flores verdadeiras, elas tem a certeza de que são sim, verdadeiras, mas outras, que apesar da aparência, nada tem com as originais, até porque, como não tem vida, não morrem
E não morrer talvez seja a sua grande frustração. Da mesma forma que as palavras, signos frustrados que buscam comunicação, soam pequenas, falsas e artificiais quando querem dizer o que é impossível de ser dito. E o que faz um espetáculo que tem como ponto de partida a poesia do que é impossível de ser dito? Vai encontrar-se numa dramaturgia de perguntas. Por quê? Por quê? Por quê?  “Minha Vontade de Ser Bicho” não se esconde do enigma, ao contrário, vai em sua direção como um desbravador ou um suicida. Porque a morte, em todas as suas formas, espreita a cada passo. E é na caminhada quase imperceptível desse suicídio poético que se faz o teatro. Não, não nos interessam os personagens, nem os conflitos, nem o começo, nem o meio e muito menos o fim. Interessa-nos o tempo, interessa-nos o som que sai da boca, cheio de desejos de expressões, mas que, imperfeito, mal consegue existir. Interessa-nos o sentimento de não se sentir completo como ser humano e muito menos como artista, enquanto algo mais profundo não se fizer existir, senão no espaço, no tempo.
A poética dessa dramaturgia de perguntas vai procurar atores inquietos e enigmáticos, que pesquisam as palavras não como reflexos de sentimentos, mas como vômitos necessários para alguma sensação de “estar” em cena, que pouco ou nada tem a ver com construção de personagem. É um estado de interpretação que se situa entre o micro segundo que separa a vida da morte. Mas como nem nesta última frase as palavras são suficientes para descrever o fato, é preciso permitir-se existir como artista e criador e ao mesmo tempo interpretar a própria dúvida.
Clarice Lispector entregou-se de corpo e alma ao desesperador universo das palavras e agarrou-se a elas como quem escala uma montanha de espinhos. E assim, vulnerável e corajosa, fez das palavras o sentido de sua vida. Assim é também nosso espetáculo, um grito humano, com o desejo sincero de ser apenas um grito animal. Mas o espetáculo não é o grito, é o desejo.
Edson Bueno
Serviço:Teatro Novelas Curitibanas. Até 20 de março de 2011. Quinta a domingo, 20hrs – Entrada franca. Rua Carlos Cavalcanti, 1222 / São Francisco. Info. 41 3321 3358  e 41 9196 0226

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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